A Busca
Em alguns momentos você não precisa ir tão longe para procurar por um sentido na vida, por algo perdido ou uma boa história.
Da janela do seu quarto, via um trânsito constante de pássaros sobre uma vasta protuberância verde no meio dos pequenos espigões e do cinza do asfalto. Ficava imaginando como aquilo tudo era anos atrás: um mundo selvagem, livre e desconhecido antes da dita civilização civilizar tudo ali. O sol iluminava aquela tarde com um azul celeste forte, contudo, já soprava um frio junino que ele adorava.
- Sobre o que é? – perguntou-lhe uma
voz um tanto rouca. Ontem tinha lhe perguntado a mesma coisa. E anteontem. Já
não sabia o que dizer.
- É sobre alguém... – tentou fugir.
- Existem milhões de alguéns por aí! –
lhe agarrou. – Quem é este e o que ele faz de especial?
- Eu não decidi ainda, resignou-se.
- Você não sabe, quer dizer, rebateu
com um sorriso no rosto.
- Mas você sabe! Você sabe tudo! Por
que me pergunta ainda?
- É a minha função.
- Podia tentar me ajudar...
- Essa não é minha função! – disse
olhando-o seriamente. – Você não quer ir até lá? – aquele apenas o encarou com
um ar suplicante e deu um suspiro profundo antes de voltar seus olhos para o
caderno vazio. – Mas você sempre vai lá em momentos assim... Por que não agora?
- Acho que não quero mais ir... –
respondeu enfim.
- Está com medo? – sentenciou-lhe.
- Medo? Não, eu... não sei, talvez...
- Isso não faz o menor sentido! – disse
ele. – Aquele lugar é seu. E as pessoas que estão lá...
- Eu sei das pessoas que estão lá! –
interrompeu-o.
- As pessoas que estão lá, continuou; é
que podem lhe ajudar!
Ele respirou fundo mais uma vez e
passou as mãos na cabeça. Sentia-se cansado, porém, não fisicamente.
- Eu só não queria ir lá toda vez
que... – e foi interrompido por uma gargalhada.
- Está se ouvindo? – disse-lhe.
- Bom, estou ouvindo você, não estou? –
retrucou-lhe.
- Repito: isso não faz o menor sentido!
– e continuou a gargalhar.
- Está bem, eu vou! – gritou ele e
levantou-se. O outro silenciou-se imediatamente. – Veja, estou indo! – e saiu.
A roupa que lhe vestia o corpo era suficiente: uma calça jeans, uma camiseta
branca e coincidentemente calçava um par de tênis. A caminhada não era longa;
cerca de poucos minutos já havia chegado a uma pequena rua assentada em
paralelepípedos com sobrados brancos colados um ao outro em ambos os lados.
Parou em frente a um com o muro baixo, um pequeno portão de madeira e um
modesto jardim bem em frente a enorme janela tapada com uma persiana bege
clara. A porta vinho-escuro estava destrancada e ele entrou sem problemas. A
sala que entrara era larga e tinha uma decoração simples. Um enorme tapete de
tons marrons e dourados cobria boa parte do piso tacado; havia um enorme sofá e
duas poltronas perpendiculares àquele combinando sua coloração de couro
avermelhada; e tomando conta de quase toda uma parede uma enorme estante de
madeira continha, entre vários objetos que a decoravam, uma grande TV que
curiosamente estava ligada. Mas não havia ninguém no ambiente. Ele ouviu
barulhos vindo da cozinha, no entanto, não quis ir até lá ainda. Preferiu subir
a escada que ficava quase em frente a estante. Ela fazia uma pequena curva para
a direita e, quando terminou de escalar seus degraus, chegara a um corredor.
Era reto e um tanto estreito. Havia portas para ambos os lados e parecia não
ter fim. Seguiu a esquerda e escolheu abrir a terceira porta. Dentro do quarto,
havia um rapaz; de acentuada pele negra, estava sentado no chão em frente a uma
TV jogando algum jogo eletrônico. Seu personagem enfrentava o que parecia ser
criaturas demoníacas e ele se aproximou.
- Opa, e aí, joga comigo? –
perguntou-lhe entusiasmado sem tirar os olhos da tela.
- Outro dia, lhe respondeu sentando ao
seu lado. – Como você está?
- Bem, por quê? Cê parece preocupado...
- Um pouco acho... Mas como você está
mesmo? Acha ruim ficar aqui muito tempo?
- Não mesmo! – respondeu. – Aqui posso
fazer o que quiser! E, além do mais, não vou ficar aqui pra sempre, né?
- Como sabe disso? – perguntou-lhe.
- Você mesmo disse! – respondeu-lhe e
aquele sorriu apenas. – Eu... tenho que ir agora? – indagou o rapaz. – É por
isto que está aqui? – ele demorou alguns instantes para responder, então:
- Não, não... Só vim ver como você está
mesmo! Não se preocupe, pode continuar no seu jogo, e se levantou. Ao dirigir-se
a porta, o rapaz ainda lhe falou:
- Sabe, se precisar...
- Sei exatamente onde você está,
completou com um sorriso no rosto.
Quando fechou a porta, ficou imóvel por
um instante. Parecia decidir em qual dos outros recintos visitaria. Pulou mais
um e entrou no seguinte à direita. Havia um total silêncio no corredor, mas ao
abrir a porta, era como se uma multidão estivesse falando ao mesmo tempo.
Porém, eram apenas quatro. E falavam ao mesmo tempo.
- Oi! – teve que levantar a voz para
que os outros percebessem que não estavam sozinhos.
- Vejam quem apareceu! – disse um deles
de descendência oriental. – Vem cá rapaz! – deu-lhe uma carinhosa
chave-de-braço e o puxou em direção aos demais. – Estávamos falando de você!
- De mim? – surpreendeu-se. – Mas sobre
o quê exatamente?
- Sobre nós, exatamente! – respondeu um
grandão. A longa cabeleira chegando na cintura e se misturando com a pelugem
abundante que cobria boa parte do seu corpo só não era mais curioso do que sua
ciclópica feição.
- Certo... O que querem saber? –
perguntou percebendo uma tensão no ar.
- Sobre nós! – disse uma linda moça.
Sua pele azul celeste contrastando com lisos prateados e duas pérolas douradas
davam-lhe uma beleza ímpar. Contudo, ela estava séria. – Por que estamos aqui
ainda? Achei que estávamos prontos? – perguntou-lhe com os braços cruzados.
- E estão, respondeu não apenas para
ela, mas para todos ali; só preciso de um pouco mais de tempo...
- Mais tempo! Pra quê? – esbravejou
ela.
- Calma agora! – ordenou uma voz vinda
de um dos cantos do dormitório. Era um homem, negro, tinha uma autoridade
natural, apesar do discreto cavanhaque lhe tirar parte desta austeridade. –
Deixem o homem falar, concluiu.
- Obrigado. Vejam, não há nenhum motivo
para terem pressa. Tudo tem o seu tempo e o de vocês chegará em breve. Esperem
só mais um pouco, por favor...
- Não gosto de esperar, disse ela e
percebeu o olhar reprovador de seu líder.
- É, eu sei disso, disse-lhe com um
leve sorriso.
- Esperaremos sim, sem problemas, certo
pessoal? – disse o comandante daquele bando.
- Vamos sim, chega aí! – e o primeiro a
lhe recepcionar, também foi o primeiro a se despedir com um caloroso abraço.
Logo depois vieram o grandalhão mitológico e o verdadeiro capitão daquela
estranha tripulação. A moça de olhos dourados foi a última.
- Não demore muito! – disse ela.
- Não vou! – e se retirou do quarto. Ao
voltar àquele longo e silencioso corredor, ele desejou por instantes ouvir uma
vez mais aquelas vozes desencontradas.
Decidiu então seguir o caminho inverso
e voltar em direção à escada. Porém, deteve-se em frente a primeira porta à
direita e entrou. Parecia impossível, mas era como se ali naquele quarto
estivesse mais silencioso do que o corredor. Não havia nada ali a não ser uma
cadeira e uma cama ao lado. Alguém estava deitado nela. Ele se aproximou e
sentou-se.
- Não precisa ficar assim o tempo todo,
disse ele.
- Mas foi assim que você me deixou... –
replicou-lhe com os olhos fixos no teto branco. Aquele apenas o fitou. Queria
encontrar as palavras certas, mas talvez o momento não fosse o certo, pensou.
- Mas não tem que ficar desse jeito!
Esse é o seu mundo, pode fazer o que quiser aqui! – tentou explicar.
- Meu mundo? – olhou então para ele. –
Achei que fosse o seu mundo! Que tudo e todos aqui fossem seus como
brinquedos... Não é isso que somos para você: brinquedos? – e voltou-se para o
teto.
- Não, não são! – respondeu-lhe
enfático. – Vocês são mais do que isso! Vocês existem, são reais... Pra mim e
pra quem conhecê-los também.
O silêncio falou. O homem deitado na
cama parecia absorver aquelas palavras fitando o vazio. Ele também parecia
absorver algo. Fora ali para encontrar o que lhe faltava e, em cada um daqueles
que viu, buscava preencher uma página vazia. Tão vazia quanto aquele quarto
hermético. O homem deitado por fim falou.
- Me desculpe, disse; acho que só
queria dizer como me sinto.
- Não tem problema, aceitou ele com um
sorriso.
- Está aqui para me levar a algum
lugar?
- Ainda não, lhe respondeu. – Mas como
disse aos outros, em breve todos terão sua vez, completou e se levantou. Ao
chegar a porta, porém, deteve-se e o indagou: - Vai ficar deitado aí mesmo?
- Sim, eu prefiro. Economiza energia,
lhe respondeu. Ele sorriu de novo e o deixou.
Ao descer a escada, sentiu-se
estranhamente mais aliviado. Passou pela sala e foi direto para a cozinha. Era
pequena, bem menor do que se lembrava. Um cheiro convidativo de bolo de fubá
recém-saído do forno impregnava o ar e ele logo se sentou. A pequena mesa
arredondada no centro da cozinha já estava posta. Uma toalha quadriculada a
forrava e quatro pratos em frente às respectivas cadeiras completavam a
decoração.
- Convidou mais alguém? – perguntou ele
para a então cozinheira. Era uma mocinha de pele amorenada com um vestido
amarelo e sandálias combinando a cor. Trazia nas mãos o generoso bolo num
prato. E ela sorria tanto com seus lábios melosos quanto com os olhos de avelã.
- Me diga você: chamou mais alguém? –
rebateu ela.
Ele soltou uma leve risada enquanto se
servia de um pedaço de bolo.
- É por isso que eu te amo! – disse ele
e ambos riram.
- Por que sempre quer me ver aqui na
cozinha? – indagou ela. – É só pelos bolos?
- Pra ser sincero sim! – respondeu com
a boca cheia. – Além do que é sempre bom conversar em outro lugar que não um
quarto, não acha?
- Tá, mas não veio pra falar de mim,
não é? – quis ela saber com seus olhos vivos em cima dele. Ele se servia do
segundo pedaço e deu uma garfada. Desviou um pouco do olhar dela quando
perguntou:
- Ele ainda está lá?
- Claro que sim, respondeu; está no
mesmo lugar que você o deixou.
Mastigou um mais um pouco antes de se
dirigir a ela de novo. Parecia estar também mastigando seus pensamentos.
- Acha que é a hora dele? – perguntou
enfim.
- Você acha que é? – retornou ela.
- Você sempre faz isso! – disse ele com
um sorriso no rosto. – Não precisa ser minha consciência o tempo todo.
- Ah, mas é isso que eu sou, não é?
Pelo menos uma parte de sua consciência, disse ela com os braços cruzados sobre
o peito estufado.
- É mesmo? E o que a minha grande e
formosa consciência sugere? – a risada que ela soltou pareceu a ele tão
deliciosa quanto a refeição que forrava seu estômago. Ela então deslizou suas
mãos sobre o rosto para se recompor.
- Vá falar com ele! – deu a sugestão
com cara de ordem e apontou para a porta da cozinha que dava para o quintal.
Ele deixou-se refletir por alguns segundos. Olhou com certa seriedade para
aquele rosto jovial e depois para a porta aberta. Podia sentir o cheiro de
terra seca e ouvir o vento dedilhando as folhas das árvores enquanto canários e
bem-te-vis conversavam. Enfim, levantou-se.
- Certo, guarde um pouco do bolo, já
volto com um convidado.
- Sim senhor! – disse ela fazendo uma
irônica continência.
Ele riu enquanto saia para descer uma
pequena escada de pedra. O quintal tinha um bom tamanho, apesar de não ser tão
grande; havia uma pequena casinha do lado esquerdo e vasos de diferentes tipos
contendo plantas e flores de diversas espécies tomando boa parte do lugar. Mas
seu objetivo era o estreito portão de madeira que ao abri-lo dava para um vasto
e protuberante matagal. Uma flora desordenada de abacateiros, goiabeiras,
amoreiras, pés-de-café e mato. Havia uma trilha de terra batida que separava
aquela miscelânea em duas e foi por ali que ele seguiu. Caminhou e caminhou. O
sol estava alto e forte, mas parecia não sentir o seu calor. Ao chegar a um
clarão, deteve-se como se esperasse por alguém. Não deve ter passado cinco
minutos quando ouviu entre o farfalhar das folhas o espanar de grandes membros
penosos. O homem parecia flutuar apesar da alta estatura e de seu considerável
peso que se fez ouvir quando pousou. Ele achava estranho vê-lo. Negro e altivo,
era como olhasse sua imagem refletida em um espelho mágico. Refletia, não uma
distorção, mas algo que gostaria de ser em algum outro lugar.
- Ei, achava que não o veria mais! –
gritou entusiasmado.
- Bom, aqui estou, disse ele trocando
um aperto de mão e um abraço com o homem alado. – Então, o que tem feito?
- Nada de mais, respondeu; apenas
andando por aí...
- Gosta daqui?
- Sim, gosto, é tranquilo... Mas, às
vezes, me sinto...
- Sozinho? – completou.
- Sim. Estranho né?
- Não mesmo! Me sinto assim quase o
tempo todo...
- Então, veio falar comigo sobre... –
ele o olhou atentamente antes de responder. Parecia não querer ofendê-lo ou
injustiçá-lo de alguma forma.
- Queria saber: acha que está pronto? –
o homem alado ficou surpreso. Parecia não esperar aquele tipo de pergunta. Foi
então que ele percebeu que o seu cuidado fora infrutífero.
- Se estou pronto? – retrucou com a voz
alterada. – Você acha que estou?
- Me desculpe, respondeu
apaziguadamente; não queria ofendê-lo. Só queria... preciso saber de você...
- Acho que só você pode responder isso!
- Como assim?
- Bom, se eu estou aqui, na sua frente
e falando com você, já não estou? – perguntou-lhe numa expressão triunfante.
Ele, por sua vez, estampou um sorriso. Era como um pai se orgulhando de um
filho.
- Muito bem! Sei disso, mas ainda tenho
algumas dúvidas... Tenho receio de estar apressando as coisas...
- Sabe, o outro seguiu; quando estou lá
em cima, muitas vezes tenho que acelerar um pouco ou mesmo mudar a direção seja
por uma ventania, um pássaro, um avião... A questão é que se temos um objetivo,
devemos sempre mantê-lo em mente independente do caminho ou direção a seguir.
Talvez seja isso que você ou nós tenhamos que fazer.
Ele esperou alguns segundos para falar.
Deixou que o vento circundasse aquelas palavras ao redor deles como estava
fazendo com as folhas e a poeira.
- Certo, então que tal entrarmos e você
escolher um quarto! – disse ele.
- Mesmo, qualquer um?
- Qualquer um! Mas vamos logo que tem
um bolo de chocolate esperando a gente! – e os dois riram como bons e velhos
amigos.
Um pouco depois, no seu apartamento,
ele ainda olhava pela janela aquela vasta protuberância verde ao longe e
reparara mais uma vez no constante fluxo de passarinhos, pombos e alguns
gaviões que planavam por ali. Já havia escrito algumas linhas em seu caderno e
aquele reparara. Coincidentemente vestia um jeans, uma camiseta branca e um par
de tênis.
Vejam só: um parágrafo inteiro! Sobre o
que é? – perguntou.
- É sobre alguém, respondeu sem tirar
os olhos da janela.
- Um alguém entre alguéns... E o que
esse alguém faz?
- Nada de mais, apenas nasceu com asas.
Creio que este foi uma maneira fantástica de contar um pouco do meu processo de criação.
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