Pedro do Fogo

           Pedro aprendeu que um grande desafio não torna um homem grande. E sim um grande homem faz de um desafio uma grande conquista.


        Ele já via ao longe o topo esbranquiçado e pedregoso do Descanso das Nuvens e o frio na sua espinha pareceu aumentar. E não era das mãos gélidas do inverno batendo a porta do outono. Ele queria pegar emprestado ou mesmo trocar seu nervosismo pela calma absolutamente serena do Noite, um corcel grande e negro que fora do seu pai. Ora ou outra, perguntava-se como o animal aguentava seu peso no dorso aumentado pela armadura prateada que usava quando, mesmo ele, mal ficava em pé. Sem falar na longa lâmina que ostentava na cintura, que sempre o pendia ligeiramente para a esquerda, e o enorme escudo nas costas. Mas esses pensamentos eram só uma maneira de distrair-se do que estava por vir. “Sou muito novo!”, havia dito para o Sacerdote Moacyr. “Já tem quinze anos, Pedro, e é o único primogênito.”, lhe respondeu enquanto ele se lamentava. Pensou que se chorasse, talvez lhe aliviariam dessa tarefa. Porém, mal havia lhe ocorrido o pensamento, as sobrancelhas grisalhas e grossas do sacerdote retesaram e do meio daquela longa barba branca saiu a ordem: “Não pode, não mais, é um homem agora!”.
         E assim tentava se sentir. Não era tão difícil. Alguns músculos já se apresentavam dentro dos seus um e setenta e cinco devido aos treinamentos com o pai e os cabelos longos e desgrenhados já chamavam a atenção das donzelas. Mas agora, debaixo do elmo, seu olhar estava fixo para a frente. Não precisava usá-lo ainda, contudo, ajudava a aquecê-lo, junto com as camadas de cota de malha e couro que usava por baixo. E enquanto o Noite trotava sobre a terra batida do Vale dos Deuses, suas lembranças trotavam para longe dali, quando era seu pai que conduzia o cavalo com ele agarrado às suas costas. Sempre dizia o quanto se orgulhava por seu filho ser um Primogênito do Sol: “Talvez você nunca tenha que enfrentar o Terrível Arko, ainda assim, o tornarei um grande guerreiro!”, disse ele. Seu pai, que fora conhecido como João do Ferro, lhe ensinara muito. Contudo, foram nas aulas com os sacerdotes que havia aprendido sobre os Primogênitos do Sol. Eram chamados assim os homens que nasciam no primeiro dia do verão. Era raro isso acontecer. O Sacerdote Moacyr dizia que os deuses preferiam que as mulheres nascessem no verão, sinalizando boa plantação e colheita, enquanto que os homens viriam no inverno, prenunciando boas caçadas e uma estação branda. Muitos achavam pura superstição, mas quando Arko era mencionado, calavam-se. Há cerca de trezentos anos atrás, quando José da Terra havia nascido no início do verão, fora considerado uma maldição. Foi no seu vigésimo ano que veio o primeiro Arko. Era tão grande quanto o que assolava agora Pasto Dourado; sua pele era grossa e negra que ora cintilava luzes escarlates parecendo que o próprio monstro pegava fogo; suas asas eram tão largas que abertas era como se a noite caísse de repente; seus olhos pareciam dois sóis raivosos e famintos; e quando abria sua bocarra com seus enormes e afiados dentes, uma língua de um incandescente azul propagava-se e queimava inexoravelmente tudo o que estivesse em seu caminho. Todos no povoado, inclusive alguns sacerdotes, culparam José. No entanto, ele não se abateu. Como já era um guerreiro formado, tomou sozinho a iniciativa de matar o dragão quando ninguém mais havia conseguido. E ele conseguiu. E depois que lhe pediram perdão, houve uma grande comemoração que durou uma semana. Porém, cinquenta anos mais tarde apareceu outro Arko. Entretanto, outro Primogênito do Sol chamado Mauro do Bronze foi incumbido de derrotar o monstro também sendo bem sucedido. E assim se repetiu cinquenta anos mais tarde com Tomás do Regato. Então os sacerdotes determinaram que os deuses tinham enviado guerreiros especiais para que protegessem Pasto Dourado e assim foi.
         Porém, cem anos atrás, o impensável aconteceu. Alexandre do Ouro, um dos primogênitos mais celebre, havia perecido diante de um Arko e quase todo Pasto Dourado pereceu junto. Cinquenta anos depois um novo Pasto Dourado havia ressurgido assim como um novo Primogênito do Sol, Paulo do Cedro. Entretanto, fora o mesmo Arko que deu fim as esperanças dos pastorenhos. Agora, todos esperavam que outro Primogênito do Sol, Marcos do Silvedo, trouxesse a destruição deste Terrível Arko, O Negro, como fora chamado, e renovasse os dias auspiciosos da vila. Mas o dragão fez de mais um dos filhos dos deuses e dos homens sua presa. Para o povo era o fim. O terceiro primogênito em seguida havia morrido e eles já falavam em abandonar a região em busca de salvação. Todavia, o próprio Sacerdote Moacyr lhes lembrou que ainda restava uma última esperança, ainda havia um outro primogênito que fora deixado de lado por Marcos ter nascido antes. Apesar de Pedro ser ainda muito novo, os sacerdotes acreditavam que apenas um primogênito daria fim ao mais mortífero dos Arkos. Bastava que ele também acreditasse.
        E teria que ser rápido.
       Pedro chegara enfim a Floresta Petrificada. Era um vasto campo de enormes pinheiros que exibia um colorido degrade de verde, amarelo e bege. Porém, mais da metade estava enegrecida e carbonizada devido a fúria incandescente dos dragões. Teve que deixar o Noite na entrada da mata e seguir a pé. Por alguma razão lembrou-se das palavras do Sacerdote Moacyr quando saiu de Pasto Dourado: “Os deuses estão com você!”. Percebeu que eram as mesmas ditas quando seu pai falecera: “Os deuses estão com ele!”. E imaginou se essas mesmas palavras não foram ditas para os primogênitos anteriores, principalmente, os que havia tombado diante do dragão. Mas qualquer outro pensamento que pudesse ter sobre isso foi suprimido de repente e substituído por um apavorante instinto de sobrevivência fazendo com que Pedro se esconde-se atrás dos enormes monólitos de carvão e dali o visse. Era tão negro e tão terrível como o tinham descrito. Estava deitado sobre a relva queimada comendo uns restos do gado que assaltara. Não poderia dizer seu tamanho exato, mas tomou-o enorme. Precisava apenas de uma mordida para abocanhar todo um boi e sua cauda era um emaranhado escamoso sem fim. Foi então que percebeu: não poderia fazer aquilo! Como esperavam que ele, um garoto apenas, derrotasse tal criatura onde guerreiros feitos e mais bem treinados falharam? Não saberia como o povo de Pasto Dourado reagiria a sua covardia, mas havia decidido. Deu dois passos para trás, virou-se e começou a correr. Contudo, cerca de cinco metros depois, tropeçou em um galho velho levando ao chão corpo, armadura e armas. As lágrimas que havia contido durante toda a viagem também encontraram aquele solo frio e seco. E o choro falou: “Pai, me ajude! Quero ir embora, por favor, quero ir embora!”, gritava ele em pensamento sem saber que seria atendido. Parou de súbito seu pranto como se ouvisse algo ou alguém. Olhava para todos os lados e quando fixou-se a sua frente viu João do Ferro, ali em pé. Havia dois anos que seu pai falecera, no entanto, vê-lo da mesma forma, fez com que Pedro pensasse se não era algum truque, um último ensinamento para lhe dar. “Pai! Pai, me ajuda!”, gritava Pedro. No entanto, João do Ferro não saía de sua posição. Ele falava algo, mas Pedro não conseguia ouvi-lo. Seus lábios se mexiam sem sair qualquer som. Ele então se ajoelhou e, mais calmo, tentou prestar atenção no que seu pai tentava lhe dizer. Levou alguns minutos, mas teve certeza que seu pai repetia sem parar: “Sempre estarei com você”. Pedro então mudou suas lágrimas de tristeza para lágrimas de saudade. Todavia, seu pai pareceu também mudar as palavras. João do Ferro dizia: “Corra Pedro!”. Ele demorou um pouco para compreender, mas, quando entendeu, sentiu atrás de si um sopro quente que quase o derrubou. Foi como se o mundo inteiro parasse de girar. Ele tinha retesado seu corpo todo, mas conseguiu virar um pouco o pescoço e ver os olhos de fogo de Arko, o Negro quase queimá-lo. Pedro então obedeceu seu pai uma última vez e correu. Quase não conseguiu escapar da sua afiada mandíbula escorregando por um pequeno declive. O dragão foi atrás derrubando algumas das árvores secas que havia ali. Ele sabia que não conseguiria fugir por muito mais tempo e em um lampejo de coragem decidiu enfrentar e derrotar a criatura. Pedro avançou com a espada e o escudo empunhado, mas a cauda do monstro o alcançou e o jogou para um lado e a espada para outro. Quando pensou em procurar sua arma, Arko já estava sobre ele e um mar de fogo o inundou. Ele conseguiu se proteger com o escudo e a armadura, mas o calor que sentira achou ser equivalente de estar dentro do sol. O dragão cessou seu incêndio por alguns segundos parecendo tomar fôlego e então Pedro rolou sobre si e conseguiu correr para detrás de algumas rochas. Precisava pensar em algo rápido. Arko já tentava abocanhá-lo e vociferava sem parar. Ele era mais veloz e mais forte do que se esperava. Nunca o derrotaria ali. Então, Pedro se lembrou de quando seu pai e ele caçavam. João do Ferro era o melhor caçador de javalis da região e Pedro sempre se maravilhava como os animais corriam por entre as árvores para escaparem deles. Ele tinha um plano. Não venceria Arko, o Negro em campo aberto, porém, dentro da floresta, teria uma chance. No entanto, teria que enganar o monstro. Tomou coragem e jogou algumas pedras para desviar sua atenção. Quando saiu do esconderijo, a cauda do dragão chicoteou-o outra vez. Pedro, com o escudo posicionado à frente, foi jogado bem perto de onde queria. Ele achou sua espada e conseguiu recuperá-la antes que Arko chegasse. O dragão abriu sua enorme mandíbula e um sol celeste derreteu sobre ele mais uma vez. Pareceu sentir sua alma assim como o ar de seus pulmões queimar. Entretanto, sabia que o dragão se interromperia para logo depois reiniciar seu inferno e foi o que fez. Pedro reuniu o que lhe restava de forças e arremessou seu escudo triangular de encontro às narinas da criatura. E enquanto Arko urrava de dor e fúria, Pedro aproveitou para correr para a floresta deixando para trás peça a peça da armadura. Mais leve, chegaria mais rápido. Corria, ouvindo às suas costas, a raiva do monstro aumentando, mas não se atrevia a olhar para trás. Faltava poucos metros para ele chegar na floresta quando Pedro sentiu o estrondo forte do pouso do monstro e por pouco ele não o apanhou entre suas presas. A parte da floresta que ainda estava intacta ajudou a frear a criatura, porém, Arko flamejou seu inferno mais uma vez obrigando Pedro a se abrigar entre as árvores. Sem a proteção da armadura, estaria tudo acabado em segundos. Tornou a avançar na mata e o dragão o seguiu. Não conseguia derrubar todos os pinheiros que encontrava e teve que desviar constantemente, o que o atrasava e dava tempo para Pedro se preparar.  Lembrou-se de seu pai o ensinando a caçar com lanças certa vez em que foram atrás de um dos maiores javalis que já vira. Dizia João do Ferro a Pedro que: “Não importa qual é o tamanho da sua presa, você tem que deixar claro que ela é a presa e você seu predador!”. Ele viu dois galhos que lhe pareceram fortes e longos o suficiente e os cortou; subiu no que achou ser o pinheiro mais alto que ali havia e esperou que Arko ficasse na posição que ele queria. O dragão vinha desenfreado, tombando em cada árvore que encontrava. E quando Pedro viu a oportunidade, arqueou seu braço e disparou o galho feito lança que viajou pelo ar, tendo como alvo o olho esquerdo da grande criatura. Seu urro foi tão ensurdecedor que Pedro teve certeza de que o povo de Pasto Dourado o ouviu. Ele não parava de se debater, sua longa cauda parecia ter vida própria e começara a soltar cuspes chamejantes a esmo. Pedro teve receio. A cauda ou o fogo poderiam atingir a árvore em que estava, então se apressou. Posicionou-se e lançou seu segundo projétil alvejando o outro olho. Os urros não pareceram aumentar e sim mudar. Pedro já vira aquilo quando caçava com seu pai. Entre dor e raiva, havia medo nos berros do dragão. O Terrível Arko, O Negro estava com medo. Era a hora. Pedro esperou que ele estivesse próximo o suficiente, pulou dois galhos ao lado e mergulhou, cravando sua espada na cabeça do monstro. Foi como domar um cavalo das montanhas ou montar um boi selvagem. Arko não parava de se mexer ou de expelir sua língua incendiária por eternos minutos. Mas Pedro segurava firme em sua espada e notou que aos poucos o dragão se acalmava. Tombou no chão enfim e, ao invés de fogo, fora um vapor efervescente que a criatura soprara. Pedro levou alguns minutos ainda para acreditar que tinha conseguido. Levantou-se em cima mesmo do dragão e puxou a espada do seu crânio. Olhou-o e achou que este Arko não era tão grande afinal. Sem pensar, ergueu sua arma para o alto, encheu os pulmões e gritou: “Pai, pai eu consegui! Eu consegui!”. E quem estivesse perto saberia, ao ouvi-lo, que o temível matador de primogênitos havia perecido.
         A penumbra já cobria boa parte do céu de Pasto Dourado. Um frio gélido deixava o ambiente pouco convidativo para ficar na rua, porém, o movimento só aumentava. As pessoas não queriam perder tempo e nem o pouco que lhes restava. Deixariam a vila apesar dos apelos dos sacerdotes. “O garoto está morto!”, disse um deles; “Você enviou o menino para a sua própria execução!”, disse outro. Mas o Sacerdote Moacyr mantinha sua convicção: “Ele vai triunfar, os deuses o acompanharam.”, disse ele. Contudo, fora ironizado pelo próprio intendente do povoado: “Sim, os deuses o acompanharam e é com eles que o menino deve estar agora!”. Entretanto, enquanto todos enchiam suas carroças, uma menina gritou: “Olha, olha, vem vindo alguém!”.  Pareceu incrível, mas todos pararam o que faziam e olharam. Vinha em um cavalo tão negro como a noite que caía vertiginosamente. Em cima do animal, a figura que estava evanescida pela escuridão, ia sendo iluminada a medida que se aproximava da vila revelando o rosto cansado e ferido de Pedro. Houve um total e incrédulo silêncio que logo se seguiu por uma estupenda ovação. Foram todos em direção ao rapaz, o tiraram de Noite e o ergueram, passando-o de ombro a ombro como se ele fosse um troféu. Contudo, Pedro pediu calma e que o colocassem no chão; ainda havia um ritual a se cumprir. Quando José da Terra voltou depois de matar o primeiro Arko, ele se ajoelhou diante do Sumo-Sacerdote, lhe entregou sua espada e disse: “Eu consegui!”. E assim fez Pedro agora aos pés do Sacerdote Moacyr. E como naquela época, ninguém acreditava que um jovem, então amaldiçoado, derrotaria tal criatura. Porém, houve uma mudança: o sacerdote também se ajoelhou e abraçou Pedro; então todos aplaudiram e começaram a gritar: “Viva Pedro! Viva Pedro!”.
         Mais tarde, quando as comemorações do Festival do Perdão chegariam ao fim, começaria o batismo de Pedro. Normalmente, ocorria sempre no décimo oitavo ano para os meninos. No entanto, devido ao seu grande feito, a cerimônia de Pedro foi adiantada. Já estava praticamente acertado que ele receberia o título de Aço por trabalhar com seu pai na fundição da vila. Mas o povo não parava de gritar. E devido às marcas de queimadura da batalha, Pedro do Fogo fora o nome que entrou para a história como o mais jovem dos Primogênitos do Sol a derrotar o Terrível Arko.

Comentários

  1. Acredito que esse seja meu primeiro conto de fantasia. Sempre gostei desse gênero em específico pela possibilidade de criar universos inteiros do nada. Claro que fui influenciado por outros escritores da área, mas foi feito com carinho.

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