Os Anjos Não Fazem Milagres

        Todos acreditavam que Miguel viera ao mundo para realizar milagres. Porém, mesmo ele e os outros terão que aprender que certos milagres não podem ser vistos com os olhos.


     1

O clima estava ameno naquela manhã de céu azul e sem nuvens. Porém, nas calçadas, a temperatura parecia elevar-se à medida que a quantidade de pessoas aumentava. Maria Clara que o diga. Levada por dona Elisabete, ela só imaginava quanta gente havia ao seu redor das várias e várias vozes que ouvia.
        - Clarinha, vamos filha, eu tô com pressa, disse dona Elisabete, mãe atenciosa e mais austera do que deveria ser.
        - Espera mãe, tô indo... – disse Clarinha, como a chamava. Ela tentava acompanhar sua mãe sempre que saíam, mas era difícil. Ela ainda tinha medo, apesar dos nove anos. Os vultos negros que via, e quando via, pareciam-lhe fantasmas ou sombrios espectros e, na rua, multiplicavam-se aos milhares. Clarinha mal se lembrava de como era a luz. Já aos três anos não enxergava mais nada, contudo, carregava as esperanças que os médicos – e foram muitos – lhe depositavam que voltaria a ver. Dona Elisabete apenas carregava sua filha cega.
        De súbito, Clarinha foi freada pela mãe. Tinham parado em frente a uma loja de roupas e calçados e a ouviu conversar com uma das vendedoras.
        - Moça, tem esse na cor azul? – perguntou.
        - Tem sim, respondeu a vendedora num tom entusiasmado; e a gente faz em até três vezes!
        - Ah, eu quero ver, mas... – estou com minha filha cega, dona Elisabete quase disse. A loja estava lotada e ela achou por bem não entrar com Clarinha naquela multidão. – Maria Clara, cê vai me esperar aqui, decidiu.
        - Não mãe, não me deixa sozinha...
        - Tá muito cheia a loja, filha e eu vou rapidinho.
        - Mas, mãe...
        - Olha fica aqui, dona Elisabete a guiou para uma das maçanetas da porta de vidro da loja e pousou sua mão direita ali. – Não sai daqui, Clarinha, mamãe vem logo,
        Então Clarinha foi deixada sozinha e no escuro. Não o escuro que ela estava acostumada, mas sim um que vinha do fundo de sua alma. Não foi a primeira vez que sua mãe a deixara assim. Dizia ela que não poderia ter pena de sua condição apenas por ser sua filha; e dizia também que quanto mais cedo Clarinha aprendesse a se virar sozinha seria melhor. Certa vez, quando foram a um supermercado, dona Elisabete deixou Clarinha na recepção para que pudesse fazer as compras livremente e ao sair a chamou de certa distância, pois temia perder o táxi. Desde então, Clarinha presta atenção para não perder a voz de sua mãe de vista, por assim dizer. Porém, ela se enganava, às vezes. Qualquer timbre parecido com o de dona Elisabete a confundia. Como aconteceu ali. Uma mulher saiu apressada da loja falando ao celular e Clarinha, assustada, teve certeza de que era sua mãe.
        - Mãe! – gritou ela. – Mãe, espera... Espera eu... – e saiu atrás da moça. Ela trombava com as pessoas e continuava. Quando por um momento pareceu não haver mais ninguém por perto, ela parou. Ela chamaria novamente por sua mãe, mas uma forte lufada de vento a interrompeu agitando suas roupas e as tranças do seu cabelo. Houve uma segunda lufada, desta vez, acompanhada de um estridente zumbido. Mas foi quando ouviu alguém gritar, sai da rua, menina, que ela descobriu onde estava.
        Ela congelou.
        Não sabia mais para que lado ficava a calçada e mais carros começaram a passar ao seu lado. Ela então fez a única coisa que conseguiu: gritou. Contudo, o trânsito, além de abafar seu chamado, impedia que outros a ajudassem. Um Gol branco que vinha em alta velocidade conseguiu desviar-se de Clarinha a tempo, porém, um Pálio cinza vindo logo atrás não conseguiria mesmo se quisesse. Ainda bem que ele já havia visto o que estava para acontecer e descera para salvar a menina. Na queda, sua velocidade era incrível, e quando o Pálio estava a poucos metros de distância de Clarinha, ele abriu suas enormes asas negras, pegou-a pelo braço e subiu, longe da confusão que se seguiria com a subsequente batida de diversos carros. Clarinha ainda gritava mesmo segura entre braços fortes e pareceu que dona Elisabete a ouviu, e não o barulho de vidro se quebrando e metal sendo retorcido na rua em frente à loja.
        - Maria Clara? Filha? – começara a gritar no meio da loja. E quando chegou na porta e não viu Clarinha, deixou-se desesperar. – Maria Clara! Cadê minha filha, cadê minha filha! – dona Elisabete esperneava-se e tentava passar através da multidão que se aglomerou ali. Já temia pelo pior quando a viu.
        - Mãe! Mãe!
        - Maria Clara, Clarinha, filha... – elas se abraçaram e choraram. Dona Elisabete segurou o pequeno rosto rechonchudo e molhado de sua filha mal sabendo o que dizer. – Clarinha, graças a Deus... Eu falei pra você não sair de lá! O que aconteceu filha?
        - Tá tudo bem mãe, ele me salvou... – Clarinha apontou às suas costas e, em meio àquele pequeno cenário de destruição, dona Elisabete viu o salvador de sua filha. Era um rapaz, de pouco mais de vinte anos, mas já parecia um homem; era enorme – deveria ter ao menos dois metros de altura – mas foi seu vestuário que dona Elisabete mais estranhou. Vestia uma espécie de macacão que lhe pareceu couro; nos pés usava sandálias que remetiam aos que os antigos romanos usavam; porém, sua pele negra e os músculos não a impressionavam mais do que o estranho capacete que usava imitando a cabeça de um falcão e as enormes asas.
        - Vejam, é São Miguel! – alguém gritou e dona Elisabete lembrou-se como o chamavam. Já tinha ouvido falar dele, mas não acreditava que realmente existisse, até agora.
        - São Miguel, São Miguel, sua benção! – gritou uma senhora que foi em sua direção. Foi o bastante. Outras pessoas sentiram-se motivadas e também foram para cima dele para pedir, tocar quem eles acreditavam ser o próprio arcanjo na Terra.
        - Por favor, tenham calma, esperem... – pediu ele, mas sem resultados. As pessoas começaram a ficar em êxtase e alguém tentou puxar uma de suas penas. A reação foi instantânea e involuntária. Suas asas abertas têm uma envergadura de até seis metros de uma ponta a outra e algumas pessoas foram empurradas ou jogadas no chão. A confusão parecia aumentar quando, de repente, ouviram-se sirenes. Miguel olhou e viu viaturas da polícia e da emergência vindo; olhou para os feridos entre os veículos batidos e aliviou-se com o auxílio que receberiam; olhou também para Clarinha e sua mãe que, apesar de assustadas, estavam bem.
        Ele não era mais necessário ali.
        Então abriu seus enormes membros para sim afastar um pouco aquela multidão. A intenção dele era abrir caminho. Deu três longos passos, um salto para o capô de um carro e depois mais um para alçar voo. E a cada batida de suas asas, subia mais e mais. Contudo, as pessoas não ficaram aborrecidas, pelo contrário, mantiveram e até aumentaram as mesmas súplicas de bênçãos e pedidos diversos. Porém, sem saberem, muito menos Miguel, um pedido em particular foi atendido.
        - Meu Deus, Clarinha, ele te salvou? – perguntou emocionada dona Elisabete.
        - Salvou sim, mamãe, respondeu Clarinha.
        - Você não ficou com medo?
        - Um pouco, quando ele me pegou... Eu pensei que o rosto dele era daquele jeito, mas depois eu vi que era um capacete!
        - Maria Clara, interrompeu espantada dona Elisabete; você viu... o rosto dele?
        - Vi, mamãe! Que nem o tio Humberto falou que eu veria de novo, lembra?
        - Oh, meu Deus, Clarinha! – ela deu um abraço apertado em sua filha e deixou que mais lágrimas molhassem seu rosto.
        - Vocês estão bem? – perguntou um senhor que havia se aproximado. – Quando vi essa menina na rua... minha nossa senhora! Ainda bem que São Miguel a viu e a salvou. Ela é cega, não é?
        - Era moço, minha filha está curada!
        - Curada! – exclamou ele e mais alguém ouviu.
        - Quem foi curada, senhor? – perguntou uma mulher.
        - A filha desta senhora. Ela era cega e São Miguel a salvou!
        - Cega? – espantou-se outra senhora ao lado. – Então São Miguel curou a menina!
        - Eu sabia! – disse outro. – Ele é mesmo um anjo enviado pelo Senhor!
        E todos começaram a se aproximar e a criar, sem querer, um grande círculo em volta de Clarinha e dona Elisabete dividindo o que consideravam um verdadeiro milagre. Era apenas o começo de uma grande comoção.




        2

Uma figura meio-homem, meio-pássaro cruzava o céu da cidade com certa preocupação. Havia já um mês desde o incidente que quase vitimou Clarinha, no entanto, Miguel não teve sossego. Onde quer que pousasse, pessoas logo se aglomeravam lhe pedindo praticamente tudo. Eu não curei ninguém, sempre dizia. Não sou um santo, repetia para os outros e até para si mesmo, mas nada do que dissesse ou fizesse as faziam desistir do que já tinha se tornado uma peregrinação. Alguns já sabiam onde ele costuma pousar durante suas rondas e o esperavam, às vezes, por dias. Por muita sorte a maioria não sabia onde morava, contudo, do jeito que as coisas iam, parecia uma questão de tempo. Agora, sempre que chegava ao seu bairro, dava duas, até três voltas ao redor para ver se tinha algum sinal dos autoproclamados Fiéis de São Miguel. Quando havia pouco movimento nas ruas, ele se arremetia em direção a sua casa. A sacada que dava direto ao seu quarto era quase uma plataforma onde pousava e fugia de olhares muito curiosos. Seu irmão, brincando, deu o nome de Ninho do Pássaro e ficava no último andar de um modesto sobrado. Depois de deixar seu capacete pendurado em um suporte na parede, desceu as escadas. Havia espaço suficiente para que suas grandes asas pudessem passar sem problemas. Ouviu vozes vindas do quarto de seus pais e, quando abriu a porta, estavam todos assistindo a T.V.
        - Olha, Miguel, a Luiza está falando com a Clarinha de novo! – disse Mariana. Miguel nunca parava de se surpreender com sua irmã caçula; apesar da sua condição, sempre tinha um sorriso no rosto. Dona Lúcia, que estava sentada na cama ao seu lado o encarou parecendo ler seus pensamentos.
        - Aconteceu de novo, filho? – perguntou ela.
        - Sim, mãe, aconteceu de novo! – respondeu com uma expressão enfastiada. – Não sei mais o que fazer... – ia dizendo quando seu João se levantou da cadeira que estava e saiu do quarto passando por Miguel. Ele sabia o que isso significava. Quando seu pai queria falar algo a sério, isolava-se em algum lugar e apenas com o olhar chamava quem precisasse. Ele foi até o final do corredor, perto da escada, e Miguel o seguiu. – Olha pai, talvez seja melhor...
        - Se esconder? – interrompeu-o, dizendo em voz alta o exato pensamento dele. Vez ou outra, Miguel perguntava-se se seu pai também lia seus pensamentos e se não era por isso que havia nascido assim.
        - Talvez fosse melhor... por um tempo, pelo menos... E se esse pessoal vier pra cá? Eu estou pensando na segurança de vocês!
        - Por acaso se esqueceu que já passamos por isso quando você veio ao mundo? Nos escondemos para que você conseguisse crescer em paz e agora, você já é um homem feito! Não adianta mais se esconder, todos já sabem sobre você! Você deve apenas fazer o que já tem feito.
        - O senhor acha mesmo que eu posso curar pessoas? Nunca me disse nada depois do que aconteceu...
        - Eu não sei filho... Só Deus sabe o que você pode ou não fazer. Ele te colocou nas nossas vidas por alguma razão – sua mãe e eu temos certeza disso – e se Ele também te colocou na vida daquela menina, foi por algum motivo. Se você pode curar alguém, logo saberemos a verdade, filho. – Miguel abaixou levemente a cabeça e seu pai depositou suas mãos em seus ombros. Mesmo seu João tendo que esticar seus braços para cima, Miguel ainda se sentia uma criança perto dele. – Lembre-se, Miguel: fazer nada não adianta! Há consequências tanto para quem faz o mal, quanto para quem faz o bem. – então puxou sua cabeça e lhe beijou a testa antes de voltar para o quarto. Ele ainda ficou ali pensativo e deu uma olhada em sua família prestando mais atenção em sua irmã. Parecia que a admirava pela primeira vez. Se pudesse arrancar suas asas e dá-las para ela, faria sem pensar, entretanto, se tudo o que estava acontecendo fosse mesmo real, ele poderia fazer com que sua irmã levantasse daquela cadeira de rodas e enfim andasse. Miguel imaginou que teria a mesma sensação de voar.  




        3

Clarinha e dona Elisabete estavam vivendo o que poderia se considerar uma lua-de-mel entre mãe e filha. Foi Clarinha que havia recuperado a visão, mas pareceu que sua mãe que começara a enxergá-la como nunca antes. A cada dia que a menina melhorava, ficava mais independente, porém, isso não impedia dona Elisabete de acompanhar todos os seus passos. Clarinha ainda se valeu de uma certa fama sendo considerada um milagre, curada por quem muitos consideravam o verdadeiro São Miguel Arcanjo. Era sempre entrevistada por vários programas de T.V. e dona Elisabete era só orgulho. Ela se sentia como se desse luz a Clarinha novamente; como se enfim tivesse uma filha e não uma obrigação, como costumava pensar. Entretanto, ficava apreensiva quando deixava a menina na escola, ao menos no começo. Pedira as professoras e a diretora que a avisasse se acontecesse algo.
E não havia acontecido nada muito grave com Clarinha até aquela quinta-feira.
        A diretora ligou para dona Elisabete dizendo que a menina tinha se machucado no pátio e que chorava muito. Quando chegou e perguntou a ela o que havia acontecido, disse que tinha tropeçado no que pensou ser uma pedra, quando na verdade fora em uma mochila de algum aluno. Com o coração na mão, dona Elisabete perguntou a Clarinha o porquê não ter conseguido ver onde tropeçara e ela, aos prantos, disse que não viu. Pior: disse também que mal conseguia distinguir os traços do rosto de sua mãe e dos outros que ali estavam. Então o chão faltou também para dona Elisabete. Após o incidente, ela levou Clarinha para o mesmo oftalmologista que a acompanhava desde pequena e que também a examinou depois do chamado milagre e constatou que sua visão estava regredindo ao que era antes. Se ela via as coisas tão nitidamente, passou a enxergar como se visse através de um vidro embaçado e dia após dia esse vidro ia escurecendo. Dona Elisabete a levou ainda para outros dois médicos e ambos chegaram à mesma conclusão. Não souberam explicar a perda e tão pouco como Clarinha havia recuperado sua visão total semanas atrás. Restou então a ambas que rezassem por um novo milagre. Dona Elisabete, então, vira-se novamente sendo puxada por sua filha para um abismo escuro e sem fim e esperava que aquele anjo salvador as resgatassem dali. Clarinha tinha outra visão, no entanto. Na sua, não era um abismo em que estava, mas em uma caverna fria e turva onde ela, de mãos dadas com sua mãe e Miguel, esperava que a levasse de volta para a luz não importando para qual direção iriam.




       


4

Miguel chegou em sua casa por volta de quatro horas da tarde quando um sol alaranjado estava prestes a encerrar mais um dia. Ele pousou, entrou em seu quarto, despiu-se de seu uniforme de trabalho, como às vezes considerava, e vestiu apenas uma bermuda. O último mês foi um tanto atípico. Aparentemente havia curado a cegueira de uma garota o que exacerbou os sentimentos de toda a cidade. Ainda mais com a aproximação do final de ano, todos já consideravam aquele um milagre de Natal. Miguel queria ter certeza disso. Seus pais sempre diziam que foram abençoados por Deus que mandara um anjo através deles. Ele não dizia nada, porém, não concordava. Não sabia exatamente o que era, mas não se sentia um anjo. E se aquela família foi abençoada, o que dizer de Mariana. Ele tinha chegado ao quarto da irmã caçula e a flagrou cochilando em sua cama. Sabia que sua mãe estava lã embaixo na cozinha e decidiu que não haveria melhor momento. Miguel não se sentia abençoado e sim culpado. Ele, além de poder andar, nascera com asas enquanto sua irmã, pequena e graciosa, passaria o resto da vida dependente de uma cadeira de rodas. Por conta de complicações no parto de sua mãe, Mariana nasceu paraplégica. Havia uma suspeita que fora devido ao parto anterior de Miguel. Para ele era o suficiente. Aproximou-se de sua cama e a tomou sim como um anjo. Se ele realmente podia curar as pessoas, então esse seria seu verdadeiro milagre de Natal. Ele subiu levemente o lençol de sua irmã para que apenas revelasse suas pequenas e atrofiadas pernas; colocou suavemente suas mãos sobre elas, fechou os olhos e esperou. Não rezou ou proferiu qualquer tipo de oração. Como na primeira vez não pensou em nada sequer, não achou que precisasse agora. Apesar de não fazer ideia de quanto tempo havia ficado ali, passaram-se três minutos quando a ouviu.
        - Miguel... – sussurrou Mariana.
        - Mari, como você está?
        - Bem, Miguel, por quê? – perguntou tentando se apoiar nos cotovelos. – O que você está fazendo?
        - Eu... sente-se melhor?
        - Sim... achou que eu estava doente... Eu estou bem, Miguel.
        - Não, quero dizer... Não sente nada diferente? – ele olhou de soslaio para as pernas dela.
        - Diferente como, Miguel... o que estava fazendo? – perguntou um pouco assustada. Ele, contudo, mostrou a ela uma expressão que misturava súplica e certa decepção. Miguel imaginara que assim que ela acordasse, levantaria da cama e desse pulos de alegria. Pareceu que também havia acordado.
         - Suas pernas, conseguiu dizer enfim; não sente nada? – ela espantou-se com aquilo. Sequer esperava uma situação parecida, porém, depois de alguns segundos compreendeu o porquê seu irmão tomara aquela atitude. Ela lhe respondeu balançando a cabeça negativamente enquanto algumas lágrimas insistiam em deixar seus olhos. – Mas, eu não entendo, disse ele sentando-se no chão; como eu consegui curar aquela menina e não consegui curar você!
        - Miguel... – ia dizendo, mas fora interrompida.
        - Não, não é justo! – exacerbou-se tentando conter seu pranto. – Talvez se eu tentar de novo, acho que...
        - Miguel, não! – disse Mariana enfática. – Vem aqui, esticou seus braços para que pudesse alcançar suas mãos; não sei como você curou a Clarinha, acho que só Deus sabe, mas... eu não preciso Miguel.
        - Como não, Mari! Sempre que eu olho pra você eu... Não é justo! Nasci com asas, posso voar e você nessa cadeira... Se eu pudesse...
        - Ah, Miguel... isso não é culpa sua...
        - Mas eu... Como você...
        - Achou que eu não percebia? O jeito que sempre olha pra mim, é bem mais que preocupação. Não se sinta assim. Ter nascido deficiente não é culpa sua, da mãe, do pai, nem de ninguém! Não vou mentir: eu ficava triste sim toda vez que eu via outras crianças brincando, correndo e eu sentada naquela cadeira sem poder sequer me levantar... Mas então eu percebi o quanto vocês são amorosos comigo que eu acho que perderia isso se eu fosse igual a todo mundo... Acho que perderia até você. Acredite em mim, Miguel, estou muito feliz sim! Tenho meus pais, meus irmãos, está tudo perfeito... – disse ela secando o rosto com as mãos. Miguel também tinha algumas lágrimas. Contudo, não eram de tristeza e sim de admiração pela sua irmã, tão jovem e com uma maturidade impressionante. Ambos se abraçaram. Foram alguns segundos apenas, mas pareceram décadas. Foi o chamado de dona Lúcia que interrompeu aquele momento sublime.
        - Miguel, você está aí? É a Luiza no telefone!
        Os dois se olharam e riram. Um riso espontâneo e alegre que também pareceu durar uma eternidade.





        5

Miguel conhecia toda São Paulo do alto. Quando voava de um bairro para outro, era inevitável ver as diferenças entre uma região abastada e outra carente. Sempre perguntara-se por que era tão difícil que todos tivessem as mesmas oportunidades, as mesmas condições não importando quem fosse e de onde vinha. Clara e sua mãe moravam num destes bairros privilegiados. Pela descrição que Luiza deu ao telefone conseguiu identificar o sobrado delas. Não era tão grande, mas era bem cuidado. Mal acreditara no que tinha acontecido. Tão logo havia tentado curar Mariana, Luiza dera a notícia que Clarinha tinha perdido a visão. Perguntou-se se haveria alguma relação entre os dois acontecimentos. Ficou sem saber se lamentava ou se sentia aliviado, então disse apenas que iria procurá-las. Como achou que estava protelando muito, decidiu descer. Havia dado duas voltas esperando diminuir o movimento e, quando se sentiu seguro, mergulhou. A descida foi rápida e a poucos metros do chão ergueu o tronco para que pudesse apenas planar até o quintal de Clarinha. Logo a viu, sentada em uma pequena cadeira de balanço com a cabeça apontada para o alto; então pousou tão suavemente quanto pode para não chamar atenção, mas ainda assim:
        - Quem tá aí? – perguntou com uma voz fina e doce. – Miguel, é você?
        Ele se espantou pela menina perceber sua presença, porém, lembrou-se de que ela sempre fora cega.
        - Como sabia que era eu, Clarinha? – perguntou já a seu lado.
        - Eu ouvi você chegando... Tava te esperando, Miguel... – com uma das mãos alcançou uma das alças de seu macacão e ele resolveu remover seu capacete para que aqueles pequenos dedos pudessem tatear também os traços fortes de seu rosto. – Miguel, você pode curar meus olhos de novo? Eu vou ser boazinha... por favor... – lágrimas acompanharam suas súplicas e quase que Miguel também a acompanhou. No entanto, manteve-se firme. Achou que se cedesse às emoções não resolveria a situação. Ao invés, secou aquelas bochechas rosadas e segurou suas mãos.
        - Clarinha, me ouça: não sei como explicar, nem sei se há alguma explicação, mas a volta da sua visão e o retorno da sua cegueira não foram obras minhas... – o rosto da menina ganhou uma expressão de pavor tão forte quanto o frio que percorreu sua espinha. Contudo, ele continuou: - Não sou um anjo ou um santo, apenas tento ajudar as pessoas da melhor maneira que eu posso assim como ajudei você naquela ocasião e também agora. Mas devolver sua visão é algo que eu não posso fazer... Você me desculpa?
        - Mas, Miguel, você não entende... eu preciso enxergar... As pessoas não gostam de gente assim... Não pode fazer nada mesmo?
        - Não acho que você precise enxergar, Clarinha, pelo menos, não como nós! Eu já pousei em vários lugares dessa forma para que as pessoas não me vissem, mas você me “viu”! Não percebeu: você enxerga bem melhor que todos nós! Talvez nem todos gostem porque você pode ver o coração e alma de uma pessoa e não o que ela tenta parecer. Já pensou nisso? – por um instante o choro e a angústia pareceram cessar. Nisso, dona Elisabete apontou na porta e ficou ali assistindo com emoção aquela cena inusitada. Entretanto...
        - Mas, Miguel, se eu enxergar de novo, minha mãe vai gostar de mim também... – dona Elisabete ouviu. E teve o mesmo efeito de um tapa. Miguel ficou sem saber o que dizer quando a encarou. Ela se aproximou de Clarinha e menina percebeu.
        - Mamãe...
        - Filha, eu... – ela olhou rapidamente para Miguel que acenou com a cabeça. Então se agachou e segurou uma das mãos da menina. Clarinha a apertou forte como se não quisesse se perder de sua mãe. – Maria Clara, eu te amo! Sei que às vezes sou muito severa, mas é que... – um choro quis interromper seu discurso, porém, ela continuou. – Eu quero que você aprenda a se virar sozinha... A culpa é minha de você ter nascido assim, então não quero que você dependa de ninguém, nem de mim...
        - A culpa não é sua, dona Elisabete, disse Miguel; e nem da Clara. Se nascemos diferentes ou adquirimos alguma limitação, não é por culpa ou castigo, mas acho que para aprendermos uns com os outros... – ele se interrompeu por poucos segundos quando se lembrou de Mariana. Um leve sorriso esboçou em seu rosto antes que continuasse. – Dona Elisabete, se você se perdoar, então Clarinha poderá fazer o mesmo...
        - Eu... me perdoe, filha, eu te amo muito...
        - Também te amo, mamãe...

        As duas se abraçaram e, aos poucos, Miguel foi se afastando. Deteve-se e deixou-se emocionar por alguns minutos antes de levantar voo e alçar novamente os céus. Chegou à conclusão que não são anjos ou santos que fazem milagres e sim as próprias pessoas. Com vontade e amor, todos são capazes de curar qualquer malefício que seja. 

Comentários

  1. Para algum desaventurado que vez ou outra se aventure neste singelo blogue achar que é apenas coincidência qualquer semelhança entre este Miguel e o outro Miguel da série O Último Arcanjo, digo-te sim e não! Apesar de ter publicado primeiro O Último Arcanjo, o Miguel deste conto foi criado primeiro que o daquele. O que fiz foi duas versões diferentes para uma mesma ideia. Confuso?? Eu fico às vezes também então... Bom falando da história, demorou bastante para eu escrevê-la - diga-se de passagem - no entanto, ficou bem próximo do que eu havia imaginado. Não é um primor, claro, mas achei o resultado final bom. Espero escrever mais sobre este Miguel.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas