Estúdio T.N.E.
Lançamento Oficial



PRÓLOGO



            A Lua. Um planetoide qualquer que orbita a Terra; satélite sem vida para alguns... No entanto, rege parte da vida para outros. Solitária, ilumina, com seu brilho alvo e despretensioso, qualquer um que se aventure na noite fria e escura. Como naquela noite em que iluminava dois acidentados: Augusto Dias, comerciante, dono de duas lojas de móveis e seu filho, Fábio, voltavam de uma pescaria de final de semana e acabaram-se por demorar pelas horas de conversa jogada fora que Augusto tivera com amigos em Paraibuna. Se seguissem o planejado, estariam em casa por volta de oito horas da noite; eram já nove e meia. Pegaram uma estrada meia de terra, meia de asfalto para encurtar o caminho de volta e o pneu do seu Santana Quantum branco resolveu estourar. Augusto estava desacostumado com certos empenhos mecânicos, principalmente, troca de pneus. Chegando perto dos cinquenta, alguns fios grisalhos no cabelo e aquela barriguinha protuberante de microempresário bem sucedido deixaram-no sedentário e com razão. Fábio ajudou no que lhe coube. Nos seus treze anos, magrinho, gostava mesmo era de jogar videogame, um pouco de futebol, ler gibis e só. Nunca se interessou por mecânica ou qualquer assunto que seu pai o envolvia. Ajudou-o apenas a carregar o pneu. Augusto, com essa pequena viagem, queria uma espécie de aproximação maior com o filho que mal via por, na maior parte do tempo, estar ocupado com as lojas o que lhe rendia sempre reclamações da esposa. Havia se surpreendido com a aceitação de Fábio pela viagem. Amava o filho, claro, só não o conhecia tão bem; tentou fazer daquela situação uma espécie de lição de vida.
            - Bom filhão, é isso aí, ele bufava um pouco enquanto colocava o pneu novo; nós homens temos que aprender a caçar o próprio alimento e a arrumar o próprio carro! – soltou uma gargalhada rouca que Fábio já acostumara a ouvir.
            - Tá conseguindo pai? – perguntou Fábio. – A mãe deve tá preocupada com a gente.
            - Sua mãe se preocupa com qualquer coisa, respondeu Augusto. – Eu coloco isso aqui e a gente chega rapidinho em casa.
            - Tá ficando frio...
            - É... esquecemos de trazer casacos. Tem um cobertor velho no porta-malas; pode pegar ele.
            Fábio se dirigiu para a parte de trás do carro e abriu o porta-malas procurando com certa dificuldade pelo cobertor. Debaixo da caixa de isopor, onde estava a orgulhosa pescaria, ele viu um tecido cinza escuro e com a mão esquerda tentou puxá-lo.
            - Pai, tá pesada a caixa! Não consigo tirar o cobertor! – reclamou Fábio.
            - Ô Fábio, eu tô ocupado agora! Não posso fazer tudo por você filho; puxa com força! – depois que disse isso, Augusto pensou consigo mesmo que foi uma grande ideia essa de pescar e também o fato de ficarem ali, no meio de lugar nenhum, apesar de não ter exatamente planejado. Seria uma verdadeira lição para Fábio e também uma aproximação com o filho. Ele arrepender-se-ia minutos depois de sequer ter pensado aquilo.
            Fábio, como seu pai lhe sugeriu, puxava com mais força o cobertor, mas com uma das mãos segurando a caixa. O tecido já estava na metade de seu comprimento quando ele virou para sua esquerda por causa de um farfalhar que ouviu vindo do matagal ao lado; pensou que fosse o vento e continuou a puxar. Ouviu novamente o barulho e quando olhou, desejou realmente que tivesse sido o vento. Já tinha visto lobos antes em fotos nas revistas e em reportagens e filmes na T.V., porém, nunca imaginou que veria um tão perto.  Ele era enorme – pelo menos para Fábio – tinha uma pelugem acinzentada e em seus olhos havia uma expressão raivosa que se assemelhava a dos humanos. Ele rosnava baixo deixando suas presas a mostra e Fábio paralisou de medo. Queria chamar por seu pai ou correr dali o mais longe que pudesse, mas não conseguiu; e tudo foi tão rápido... O lobo deu três passadas para alcançá-lo, mas pareceram uma; e quando Fábio tombou no chão com seus caninos presos em seu ombro, ainda assim, não conseguiu gritar; abriu a boca, mas apenas engoliu saliva e um tanto de pavor. Não entendeu, portanto, como seu pai chegou ali tão depressa. Ele estava gordo, sedentário, mas tirou o lobo de cima do filho com uma força digna de um animal protegendo sua prole. A força de Augusto, no entanto, foi tanta que arrancou carne e sangue do garoto e só então ele gritou. O ferimento causou uma dor tão lancinante que Fábio quase desmaiou. Teria sido melhor. Pois assim, ele não teria visto seu pai rolando com o lobo pelo chão e este cravando seus longos caninos em seu pescoço esmagando sua traqueia como se fosse meros ossos de galinha; não teria visto seu pai estrebuchar-se até a última gota de sua vida esvair-se por completo. No entanto, não veria o caminhão que se aproximara com seu Valdomiro e sua esposa, Adelina, espantar a tal criatura para a espessa noite fazendo-a voltar para o mesmo inferno do qual saíra. O casal, quando constatou a cena, desesperou-se. Enquanto dona Adelina ficou cuidando de Fábio, seu Valdomiro foi buscar ajuda médica para ele e seu pai, apesar de que era tarde para Augusto. Talvez por isso, pela sua dor física e sentimental, Fábio nunca se esqueceu daquela noite.




PARTE UM



1

            Fábio Augusto Dias Filho acordou como que levado um susto. Por um ou dois segundos achou que estava ainda no hospital rodeado de enfermeiros e médicos. Mas quando sentiu um leve vento frio no rosto e olhou para o céu azul claro riscado com fios amarelos do amanhecer que se pronunciava, situou-se no tempo.
            Olhou ao redor e percebeu que estava entre uma árvore e um matagal descuidado; viu ao longe um senhor apenas que caminhava a passos cadenciados na direção oposta de onde Fábio se encontrava. Ainda bem, pensou. Ele estava nu! Imaginou que se alguém o visse daquele jeito, ainda mais Fábio, nos seus vinte e oito anos, negro, alto, de um porte físico considerável, poderia chamar muita atenção o que ele não precisava naquele momento. Levantou-se e deu alguns passos para a sua direita; atrás do mato alto encontrava-se uma mochila grande com suas roupas e pertences. Quis agradecer a Deus por estar tudo lá do jeito que ele deixou, mas parou de acreditar Nele há muito tempo; e se ainda acreditasse, acharia que não tinha o direito.
            Vestiu seu jeans surrado, uma camiseta branca, uma malha azul com capuz, calçou seus tênis, colocou a mochila nas costas, um boné na cabeça e saiu olhando para todos os lados vendo se ninguém mesmo tinha-o notado. Pensou consigo que agora que começou não poderia mais parar.
            Em uma outra parte da cidade, a poucos quilômetros de onde Fábio estava, um homem, que também encontrava-se deitado no chão, não acordou e definitivamente nunca mais acordará. A polícia apenas conjecturava o que Marcelo Pereira da Costa fazia por ali antes de ser atacado e morto; e talvez não tivesse tanta importância quanto descobrir a identidade do suposto assassino. A rua onde encontraram o corpo não era tão movimentada: local com algumas residências e um ou outro comércio que provavelmente estavam fechados no momento do assassinato. E ninguém viu ou ouviu nada. Nem mesmo Maria de Fátima das Dores. Senhora de sessenta e dois anos saíra com sua cachorrinha poodle marrom pela calçada quando esta começou a latir freneticamente para o outro lado da rua. Ela viu perto de um poste, em frente a um bar, o que a princípio achou ser um mendigo dormindo; quando chegou mais perto percebeu uma quantidade enorme de sangue derramado pela calçada invadindo a guia devido a um profundo corte que havia no pescoço do rapaz morto vestindo um social-esporte com paletó e jeans mostrando não tratar-se realmente de um mendigo. Maria de Fátima não pensou duas vezes: pegou Barbi no colo, correu para sua casa e ligou para a polícia.
            Quinze minutos depois a primeira viatura havia chegado; mais quinze e já havia quatro viaturas, uma ambulância da emergência e um camburão do IML. A vizinhança atônita observava aquela cena que até então tinham visto apenas nas reportagens da T.V. Alguns viam dentro de suas casas como Maria de Fátima; alguns na rua, mas respeitando o isolamento feito pelos policiais. Pedro Alcântara, investigador da polícia civil, também observava, porém, mais próximo, ao lado dos peritos aguardando estes darem seu primeiro parecer.
            - Então? – perguntou Alcântara a Flávio Toledo, um deles.
            - A morte ocorreu por volta de quatro e vinte da manhã, respondeu sisudamente.
            - E o ferimento no pescoço?
            - As marcas sugerem terem sido causadas por dentes... dentes de um animal.
            - Animal! – exclamou Alcântara. – Que tipo de animal?
            - De espécie canídea.
            - Um cão! De que raça?
            - E isso importa? – perguntou Josué Matias, um dos colegas mais próximo de Alcântara.
            - Saber se o cara foi assassinado por um chihuahua ou um pittbull, Alcântara respondia com um sorriso no rosto; determina com certeza se quem controlava o animal foi um senhor baixinho de oitenta anos ou um destes filhinhos-de-papai mimados que andam por aí! Tô certo, Flávio? – dirigiu a pergunta para o perito criminal. Era um tipo bem comum Toledo. De estatura média, deixava seus cabelos de um loiro-escuro sempre impecavelmente penteados; o olhar sério por trás das grandes lentes dos óculos, e o avental branco que usava, lhe imprimiam uma expressão igualmente circunspecta.  
            - Possivelmente, respondeu lacônico.
            - Possivel... E se for um cachorro louco que o atacou? – perguntou Matias.
            - Não houve casos ainda deste tipo envolvendo cães raivosos, respondeu Toledo; e o tipo de ferimento não condiz, até onde podemos observar, com nenhuma espécie canídea criada aqui na cidade – concluiu.
            - Estão dizendo que não podem determinar a espécie que o atacou? – perguntou mais uma vez Alcântara.
            - Calma, Pedro. Quando o levarmos ao instituto, teremos maiores condições de fazer um exame completo, disse.
            - Certo, certo... e o que dissemos à imprensa? – perguntou Matias.
            - Um latrocínio, respondeu Alcântara; até sabermos direitinho como esse cara foi morto... Essa história de cachorro louco está muito estranha.
            - Muito bem então, mais um latrocínio para as estatísticas!

*

Algumas horas depois, em um sobrado da periferia sul de São Paulo, que serve de sede para a ONG Luzes do Amanhã, onde jovens e crianças encontram apoio educacional e social, seu fundador, André Nascimento Dias, estava no quintal dos fundos da casa ensinando judô para algumas crianças, quando Márcia, sua irmã e sócia na ONG, chamou-o:
            - André, telefone! – gritou da porta da cozinha.
            - Quem é Má, tô ocupado, respondeu ofegante.
            - É o Fabinho!
            - Fábio! – olhou surpreso para ela. – Não tô acreditando; eu já vou, peraí! Crianças uma pausa para uma água; já, já continuamos! – disse André para os garotos e se dirigiu rapidamente para dentro da casa onde Márcia o aguardava com o telefone na mão. Ela fez um sinal dizendo que queria falar com ele depois. André concordou com a cabeça e falou ao aparelho.
            - Fábio! È você cachorrão? – perguntou André entusiasmado. Fábio demorou cerca de cinco ou seis segundos para responder.
            - Que isso, André? Parece que a gente não se fala há uns vinte anos!
            - Não foi tudo isso, mas chegou perto!
            - Quê? E os e-mails não contam?
            - E-mails, Fábio... Tô falando de conversa mesmo, cara a cara. E aí, onde cê tá?
            - No flat.
            - Cê tá em São Paulo e só liga agora! Muy amigo você...
            - Qualé, só cheguei alguns dias atrás. Vai ficar de marcação? – os dois riram antes de André continuar.
            - Certo, não vou ficar de marcação. Mas e aí, o que conta de novo?
            - Olha só, a gente pode almoçar e então trocamos uma ideia, que cê acha?
            - Beleza, a gente almoça sim, mas você paga! Onde cê pensa em ir?
            - Tem um lugar bacana aqui perto... Me encontra próximo da estação República, mais ou menos meio-dia e quinze.
            - Combinado. Tenho que ir, meus alunos tão me chamando. A gente se vê depois.
            - Certo, até depois, André chamou Márcia e lhe entregou o telefone antes de seguir para sua aula; Fábio, em seu flat, sentou-se na cama para conversar com sua prima e com uma das mãos na cabeça soltou um suspiro de arrependimento esperando que ela não percebesse.

*

            Tarde da manhã, por volta de onze e quarenta e cinco, uma mulher com ares de garota encontrava-se sentada na calçada em frente ao Instituto Médico Legal com uma garrafinha de suco de laranja do seu lado esquerdo, uma pequena mochila do seu lado direito e em cima do colo um laptop onde digitava algo freneticamente. A cada pausa Cristina Wagner sugava por um canudo o suco preferido e, depois de dar uma olhadinha para cima batucando de leve os dedos no teclado do computador, voltava ao seu afazer. Quem a olhasse por mais de trinta minutos, perceberia que esse era um ritual próprio seu. Perceberia também que a imagem de garotinha que tinha restringia-se apenas ao seu rosto de traço levemente arredondado e ao biquinho que fazia, quando estava concentrada, deixando seus lábios negros mais carnudos. Contudo, os cabelos ainda mais negros e encaracolados, apressadamente, presos com uma tiara; os grandes olhos castanho-claros que invariavelmente estavam escondidos atrás de óculos escuros; e a silhueta esbelta de um metro e setenta e cinco vestindo uma camisa branca sob uma jaqueta de couro marrom com calça jeans e botas de salto alto já demonstravam uma mulher feita de vinte e cinco anos.
            Um rapaz, branco e com vestes simples (uma camiseta cinza, calça azul e botas pretas) aproximou-se de Cristina e sentou-se ao seu lado. Esperou que ela terminasse de digitar para lhe falar, no entanto, sem parar de teclar ou tirar os olhos da tela, perguntou-lhe:
            - Vai ficar me olhando até quando, Mário? Fala logo!
            - Posso ter uma coisa pra você.
            - O que é?
            - Um homem chegou morto hoje com um baita corte no pescoço! – nesse momento ela parou repentinamente de teclar e olhou para o seu informante oficial e que, não por acaso, era também auxiliar de limpeza do IML.
            - Mário, depois que eu te ajudei você me vem com notícia velha! Eu já sei do que ocorreu no centro, acontece o tempo todo, tô atrás de novidade, Sérgio, novidade! – e como que não tivesse parado, ela retornou ao que estava fazendo.
            - Você não me deixou terminar...
            - Então termina, não tenho o dia todo.
            - Isso foi o que disseram à imprensa; os peritos têm outra ideia sobre o que causou o ferimento.
            - E...
            - Segundo eles, foi uma mordida, uma mordida forte, uma mordida de um... lobo!
            Ela parou de novo e olhou para Mário que estampou um sorriso de orelha a orelha. Cristina demonstrou apenas uma expressão de surpresa, mas, por dentro, era toda contentamento e satisfação quando se lembrou o que seu pai sempre lhe dizia quando ainda era verdadeiramente uma garotinha: são sempre os mortos que contam as melhores histórias.



2

            O verão em uma grande metrópole, por uma série de razões, era sempre mais quente. O asfalto, os prédios, o enorme número de carros, caminhões e ônibus soltando de seus escapamentos uma fumaça quase preta, deixavam na cidade, ainda mais no centro, a sensação de estarem passando dois verões ao mesmo tempo.
            No entanto, dentro de um restaurante próximo a uma estação de metrô, Fábio e André almoçavam tranquilamente, em grande parte, devido ao ar-condicionado do estabelecimento. Fábio comia dois pedaços de bife temperado com cebola e molho de tomate apimentado; André preferiu um prato de spaghetti com pouco molho e queijo parmesão ralado. Os dois dividiam uma garrafa de cerveja e, entre uma garfada e outra, colocavam em dia o que lhes ocorreu recentemente.
            - Poxa, eu, às vezes, paro pra pensar e não acredito que você é dono de uma ONG, disse Fábio. – Como estão as coisas por lá?
            - A gente vai levando... A cada dia estamos conseguindo tirar as crianças das ruas, quer dizer, mostrando uma opção melhor do que seguir carreira na criminalidade, disse André.
            - Precisando de ajuda, conta comigo.
            - Pode deixar. E você? Descansou bem durante essas férias de sessenta dias? – André perguntou com um sorriso no rosto.
            - Não vem não... Eu trabalho bastante para merecer esse descanso! Essa é uma das vantagens de ser sócio majoritário da minha empresa.
            - Há! Você aceita provocação muito rápido! Pra onde foi desta vez?
            - Itumbiara.
            - Sério! Você curte mesmo o interior hein! Da outra vez você foi pra onde mesmo? Joanópolis?
            - É, é... – Fábio cortou com mais afinco seu pedaço de bife – E você? Só tem trabalhado na ONG? Não tem feito mais nada? – ele olhou diretamente para André quando perguntou.
            - Hã... sim... Vez ou outra ajudo um vizinho ou um garoto com alguma coisa, mas na maior parte do tempo estou com a atenção toda na ONG, André olhava rapidamente para Fábio enquanto lhe respondia. Este pareceu não se importar ou, pelo menos, não perceber o comportamento evasivo do primo. Ambos se conheciam, na verdade. Desde crianças andavam juntos, tinham a mesma idade e se consideravam mais do que primos ou mesmo amigos. Seus pais eram irmãos, portanto, era assim que também se sentiam; e seja um jogo de futebol, um passeio no shopping ou até namoricos, a dupla não se separava. No entanto, aconteceu. Primeiro Fábio, que perdera o pai e logo depois fora André, que perdeu sua liberdade. Eles se afastaram tanto fisicamente, como emocionalmente e, quando voltaram a se ver, não foi mais como antes. Mantiveram a amizade, os bate-papos, mas algo estava diferente. Eram bem jovens, porém, de alguma forma, sabiam disso.  Eles nunca conseguiram preencher aquela lacuna que se abrira. Entretanto, procuraram deixar isso de lado e seguir com suas vidas da melhor forma que puderam.
            E enquanto os dois trocavam suas respectivas vivências durante o tempo que passaram afastados, não muito longe dali, em um edifício de número cento e três da Rua Xavier de Toledo – onde se sedia o jornal Diário Paulistano – Cristina Wagner encontrava-se em frente ao seu computador digitando um texto, como sempre, freneticamente. Ao mesmo tempo, pesquisava, via internet, casos de assassinatos envolvendo animais de algum tipo e também cruzando dados com reportagens envolvendo as ações de quem a população em geral chamou de Sombra da Noite.
            Há aproximadamente cinco anos, surgiu em São Paulo algo fora do comum somente pensado em filmes ou histórias em quadrinhos: um vigilante. Houvera na cidade vários relatos de assaltos malsucedidos, roubos às pessoas, carros, casas frustrados e todos diziam que um homem misterioso, vestido de preto, era quem estava realizando as tais proezas; porém, foi num caso de sequestro que se tornou, se não público, notória a sua presença. As pessoas mal o viam, vestia preto, só aparecia à noite e uma manchete do jornal ajudaram a lhe dar o apelido.
            Cristina, que a recém começara a fazer reportagens, foi uma das poucas a levá-lo a sério e dar a ele destaque em uma das suas primeiras matérias, o que lhe rendeu algumas chacotas por parte dos seus colegas de profissão.
            Mas ela não desistiu. Essa era Cristina Wagner: persistente e curiosa. Qualidades que puxou do pai, James da Rocha Wagner, jornalista reconhecido que não pode ver sua filha única formar-se na mesma faculdade que estudou – exatamente no ano em que Cristina entrara, James Wagner, como era conhecido no meio jornalístico, teve um infarto fulminante. Contudo, passou tudo o que sabia para ela; ensinamentos estes que tentava sempre colocar em prática. Claro que não acreditava que o vigilante mudou seus hábitos de combate ao crime, apenas queria saber se ele também se envolvia com casos deste tipo, sendo que seu nome, até agora, aparecia apenas em notícias envolvendo assaltos, sequestros e tráfico de drogas.
            Alessandra, a secretária do redator-chefe do jornal, aproximou-se dela e, baixinho no seu ouvindo, disse-lhe:
            - Cris, meu amor, tá me ouvindo?
            - Alê? Que susto! O que foi?
            - Seu chefinho querido vai atendê-la agora. Não me ouviu te chamando não?
            - Desculpa, Alê, é que eu tava tão concentrada aqui...
            - Sei... É o seu namorado de novo?
            - Ele não é meu namorado! Posso ir dona Alessandra?
            - À vontade minha querida, disse ela com um sorriso irônico no rosto enquanto Cristina encaminhava-se para o escritório de Altair Ribeiro. Ele foi um grande amigo e colega de seu pai neste e em outros jornais em que trabalharam. Conhecia a desde pequena e, verdade seja dita, conseguiu seu estágio e o emprego por sua influência; o que ela não negava, porém, tentava remediar buscando reportagens que a destacasse profissionalmente independente de quem a apadrinhou; reportagens estas que o deixavam incomodado, principalmente, quando envolvia um famigerado vigilante urbano. Ele batucava os dois polegares com as mãos entrelaçadas enquanto lia o lead de Cristina. Ribeiro parecia não respirar e a cabeça baixa deixando a mostra sua acentuada calvície só aumentava sua apreensão.
            - Não, disse ele seco.
            - Não? Não digo eu! – rebateu Cristina. – Chefinho, se a polícia não quis divulgar esse caso em detalhes, é que aí tem alguma coisa.
            - Está me parecendo notícia do tipo daquele maluco que você insiste em defender... – ela abriu a boca com intenção de dizer alguma coisa, mas parou, respirou fundo e disse:
            - Por acaso o senhor está vendo o nome do maluco que eu defendo?
            - Não, Cris... Mas um lobo!
            - Não fui eu quem chegou a essa conclusão, foram os peritos do IC e...
            - Então eu vou querer uma declaração oficial, interrompeu Ribeiro.
            - Mas chefinho, se eles não querem dizer...
            - Fatos, Cris, disse ele; só trabalhamos com fatos! Ou isso ou não tem matéria!
            - Tá, disse de forma resignada; eu vou ver isso e trago pro senhor...
            - Cris, Ribeiro deteve-a antes mesmo que ela se levantasse; está na hora, se quer ser uma repórter tão boa quanto foi seu pai, está na hora.
Ela acenou com a cabeça e saiu do seu escritório. Seus olhos queriam derramar algumas gotas de lágrimas, contudo, ela os pressionou raivosamente e conseguiu contê-los, por hora.



3

            Na manhã seguinte, na sede do DHPP, estavam reunidos numa sala vários policiais e entre eles Pedro Alcântara. Sentado numa cadeira, bem em um dos cantos do recinto, com uma pasta contendo um bolo considerável de papéis com relatórios sobre recentes assassinatos apoiada em uma das pernas e, em suas mãos, segurava mais alguns com o parecer preliminar do IC sobre a morte ocorrida no centro. Apesar dos exames apontarem que uma espécie de canídeo – possivelmente um lobo – causou o ataque, ainda não tinham definindo se alguém ordenou que o animal atacasse ou se ele o fez sozinho respondendo a algum tipo de provocação ou ameaça. Enquanto lia, espocavam, em sua mente, os casos ocorridos com o Sombra da Noite. Perguntava-se se o vigilante de alguma forma tinha relação com esta morte absurda. Tinha já há algum tempo formulado uma ideia a seu respeito: este Sombra da Noite agia, sem dúvida, à margem da lei, no entanto, com o rumo que a criminalidade vem tomando ao longo dos anos, muito mais violenta, cada vez mais armada, mais agressiva e mais organizada; e a justiça com leis que na verdade são muito mais permissivas com o crime do que punitivas, talvez alguém, que aja na fronteira do certo e do errado, torne esta guerra um pouco mais justa. Não!, concluía por fim. Recuava-se dessa ideia e retomava os princípios que escolheu defender, porque sem lei e ordem, mesmo que ainda defeituosas, o país e também o mundo voltariam à selvageria, pensava. Mas teria que deixar seus conflitos pessoais para depois; naquele momento a delegada Silvana Bianchini chamou todos para que discutissem os próximos passos do caso.
            - Pessoal, por favor... Muito bem, chamei vocês aqui por dois motivos: primeiro sobre o caso da morte no centro. O IC ainda não deu um parecer completo, mas tudo indica que foi um ataque de um cachorro provavelmente doente, portanto, sem assassinato, sem crime, sem investigação do departamento.
            Houve um burburinho e uma iniciativa de protestos de alguns policiais, logo anulada com um gesto de mão da delegada.
            - Segundo motivo: o secretário pediu hoje de manhã ao delegado-geral e a todos os delegados dos departamentos que se auxiliem na procura deste tal justiceiro de preto...
            - Mas ele não é um justiceiro. – Alcântara interrompeu a delegada de forma tão despretensiosa que olhava ainda para os relatórios quando o fez. Foi mais um pensamento alto; no entanto, silenciou a sala e, quando notou, levantou seus olhos constrangido, fitando cada policial que o encarava, incluindo ela e Matias.
            - Pode repetir, Pedro? – perguntou. Ele respirou fundo antes de responder.
            - Apenas disse que ele não é um justiceiro (um justiceiro executa seus alvos) o Sombra da Noite está mais para um vigilante: combate o crime assim como nós.
            - Como nós Pedro? – retrucou Bianchini. – Usamos máscaras por acaso?
            - Não, mas usamos armas, armas de fogo; o que, até onde sabemos, ele não usa.
            - Falou bem, Pedro, até onde sabemos. Não sabemos nada a respeito deste homem; vai saber o que ele fez ou faz quando ninguém mesmo está olhando e é por isso que vamos prendê-lo antes que ele faça algo pior! Ou você está achando que esse sujeito é algum tipo de super-herói, Pedro? 
            A pergunta retórica da delegada veio com um ar de irritação e provocação, o que causou sorrisos esboçados nos colegas de Alcântara deixando-o ainda mais constrangido.
            - Silvana, só estou dizendo...
            - Acho que já dissemos muito hoje, Pedro – interrompeu. – Gente, a ordem é essa: investigamos nossos casos e ajudamos no que for preciso para prender esse marginal! Fui clara? – ela olhou diretamente para Alcântara e todos responderam quase em uníssono um sim. Ele também disse sim, porém, mais para ele mesmo.
            E enquanto todos os policiais iam saindo aos poucos, Alcântara continuava sentado e Matias, seu único e grande amigo, não se conteve quando se aproximou dele.
            - Pedro, vê se me avisa antes quando resolver ligar o bat-sinal!
            Matias lhe deu um tapinha nas costas e deixou um sorriso maroto de canto em seu rosto. Ele era considerado um tipo engraçado. Alcântara e Matias começaram no mesmo ano e, ao longo do tempo, cultivou uma protuberante barriga enquanto seus fios ainda negros aos poucos deixavam sua grande testa branca a mostra. Já era pai de duas filhas e, apesar da aparência, Alcântara sempre dizia que não havia policial com melhor pontaria que a dele. Ele o fitou deixando a sala, colocou os papéis que segurava na pasta e, quando ia se levantar, deparou-se com Bianchini na sua frente. Mulher bonita, de loiros lisos e olhos esmeraldinos, sabia impor-se com seus um e oitenta de altura.
            - Mais bronca, disse Alcântara.
            - Preciso saber se posso confiar em você, Pedro. Realmente vou precisar de sua ajuda.
            - Você a tem... acredite!

            Se a frase dita por Alcântara fez algum efeito na delegada, ela não deixou transparecer; virou-se e saiu da sala deixando um perfume que teve certeza ser de rosas. Ele ainda ficou lá, sentado na mesma cadeira, por mais uns cinco minutos refletindo sobre aquilo tudo que acontecera na reunião e o que estava acontecendo na cidade. Pensou se ali no departamento era o único que pensava diferente dos demais, pensou se dali em diante seriam as ideias dele contra as dos outros policiais. Pensou também que devia ser desse mesmo jeito que o Sombra da Noite se sentia. 



Comentários

  1. Meu marco zero, assim espero! Demorou mais do que deveria por razões que não têm a menor importância agora! No mais, fiquem a vontade: adquirem um exemplar ou baixem! E divirtam-se principalmente.

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