Andréia da Silva

  


   

        Sempre que acordava, bocejava, passava as mãos entre seus encaracolados fios negros ao mesmo tempo em que se levantava. Sabia que o dia seria cheio, então, já de pé, esticava o corpo como que se preparando para o que viria. Após seu banho, tomava o café, junto com a irmã do meio e o caçula, prontos para a escola; e com a mãe, também pronta para seu trabalho. Novidades de familiares e amigos, peripécias do irmãozinho, e um e outro fato sério se misturavam ao café com leite, chocolate e torradas com geléia de amora. Seguindo a rotina, cada um seguiria seu caminho: a mãe levava os dois para a escola de carro como sempre; ela seguia para seu trabalho de metrô. Gostava assim. Com recém vinte e dois anos completados, sentia-se cada vez mais independente e decidira não largar tão cedo seu novo modo de vida. O dia na loja de roupas passava incrivelmente rápido nas quintas e também nos sábados e terças. Ao contrário dos outros dias, como nesta quarta-feira, que parecia durar uma semana. Contudo, não reclamava. O contato com pessoas diferentes e, no meio do consumismo, ajudava-a no seu curso de publicidade. E em uma posterior carreira, gostava de pensar. Quando seu turno acabava, saia pontualmente ás seis, ou melhor, corria. A primeira aula começava ás sete e quinze e não queria perde-la. Principalmente as de sociologia da professora Maria Lurdes. Para ela eram verdadeiras palestras. Mas tinha algumas que não gostava muito. Como a de legislação do professor Soares; já a de markentig da professora Silvia compensava todo aquele tempo; e também a de criação do professor Paulo com quem disputava com as amigas um pretenso futuro marido. Apesar dele já ser casado. Quando iam embora, o assunto, ou melhor, assuntos, continuavam. Todos pegavam ônibus e metrô, sempre em grupo, o que ela achava ótimo. Contudo, a cada parada, um ou dois ficavam até sobrar só ela. Não se preocupava em voltar sozinha para casa, apesar dos dois celulares que tinham levado, e de uma mochila que, por sorte, tanto a carteira quanto o novo celular, estavam no bolso da calça. Porém, aquela noite de vinte e um de agosto seria diferente. Aquela noite ficaria colada na sua memória para sempre. Como era seu costume, tentava sempre chegar na estação ás onze e se surpreendeu com as onze e meia que a tela do celular lhe mostrava. O bate-papo na saída da faculdade se estendera mais do que imaginara e resolveu apertar o passo. Evitava o uso de fones para ter atenção total no caminho para casa, mesmo com os poucos quinze minutos que levava. Não entendeu, portanto, como não ouviu ou sequer percebeu que um homem havia se aproximado dela.

        - Ei, moça, que horas são? - perguntou. Ela olhou para um rosto comum, não parecia ser mais velho do que ela. E sabia o que ia acontecer. Ou pensava que sabia. Assim que pegasse seu celular, o homem o surrupiaria e sairia como se fosse algo corriqueiro. E, de certa forma, era. Ela colocou a mão dentro da bolsa, sentiu com os dedos o aparelho, mas nem precisou pegá-lo. - Tá, moça, encosta naquele canto ali ó - disse ele mostrando um revólver, sob a camisa, que ela só saberia depois se tratar de uma arma falsa. Ela obedeceu e seguiu, com as mãos levantadas, para o local indicado. - Cara na parede! - ordenou. Ela pensara que sua intenção era não ser identificado. Mas exatamente pelo pavor que sentiu, dificilmente se esqueceria do seu rosto. Nisso, tirou bruscamente sua bolsa do seu ombro direito. Num momento achou que a única coisa que ele levaria seriam seus pertences, porém, de maneira grosseira, uma daquelas mãos começou a afrouxar seu cinto e abaixar suas calças. Ela tencionou reagir, se livrar dele, correr, fugir... Contudo, a outra mão levou aquele artefato de plástico na sua nuca e o frio da sua espinha fez todo o seu corpo congelar. Mas ela ainda tentou fugir. Fugir para um final de semana na praia, um passeio com as amigas, um churrasco com a família. Para qualquer lugar longe daquelas mãos ásperas e sujas que a apertavam, daquele cheiro forte de cigarro e álcool que a impregnava. Ela tentou. E a única coisa que conseguiu fugir foram suas lágrimas dos seus olhos. Mal sentira quando aquilo que ela se recusava a chamar de homem a deixou. De joelhos. Não se lembrara exatamente como conseguiu chegar no seu prédio sozinha. Seu João, que sempre cuidava da portaria á noite, foi quem a acolheu e a levou até o seu apartamento. Sua mãe, vendo-a daquele jeito, entrou em desespero e as duas choraram juntas; seu João tentou acalmá-las e chamou a polícia. Duas horas depois viera uma viatura; os policiais colheram o depoimento dela e foram todos até a delegacia para os devidos procedimentos. Não queria fazer o retrato falado. Lembrar daquele rosto quase inocente lhe deu ânsia de vômito. Mas conseguiu. Voltou para casa, tomou um longo banho e, por mais que quisesse, não conseguiu dormir. A semana seguinte foi tomada por visitas: os avós, os tios, as tias, primos, amigos e amigas, seu pai com o meio-irmão. Na outra semana, ela ainda não quis sair. E foi na terceira que a polícia ligou dizendo que tinham detido um suspeito. Foram ela e a mãe. Chorou quando reconheceu aquilo e quis sair dali na mesma hora. Demorou mais duas semanas para que ela conseguisse voltar para o trabalho e aos estudos e até a dormir normalmente. Mas conseguiu. Estava aliviada que aquilo que ela não considerava um ser humano seria julgado, condenado e nem ninguém mais seria machucada por ele de novo. 

        Então ela acordou. E como sempre fazia bocejava enquanto passava os dedos nos seus longos e negros encaracolados. Levantava e esticava o corpo para enfrentar mais um dia. Deteve-se por alguns segundos, porém. Parecia que era a primeira vez que percebera essa estranha repetição de gestos. Mas achou graça, e resolveu seguir sua rotina. Fez o café da manhã com a mãe e os irmãos sempre com novidades, planos entre torradas e chocolate quente. Sua mãe levava os dois para a escola e ela seguia para o trabalho. Aquela quarta pareceu para ela demorar umas duas semanas. Ao final do seu dia, apertava os passos para não chegar atrasada na faculdade e perder a aula da professora Maria Lurdes, sua musa inspiradora. As conversas descompromissadas entre uma aula ou outra, deixavam toda aquela pressão de trabalho e estudos mais leve. E o bate-papo sempre continuava no trajeto de volta para casa. E a cada um que se despedia lhe dava um certo desânimo. Quando desembarcou na sua estação, surpreendeu-se com a hora já avançada e apertou o passo novamente. Tomara o cuidado para não usar os fones para não se distrair no caminho, apesar de curto. Nunca entendeu como aquele homem se aproximou dela sem que notasse.

        - Moça, que horas são? - perguntou. Ela Parou por alguns segundos e o encarou. Teve a sensação de já o conhecer. Tinha um rosto comum, nada que chamasse tanto a atenção. "Onze e trinta e cinco", tinha respondido e antes que pudesse dar um passo sequer, ele mostrou seu revólver preso na cintura da calça e apontou para um canto em uma esquina do outro lado da rua. Deserta e parcialmente escura. "Leve só minha bolsa", disse ela em pensamento. O medo já não a deixava falar. Todavia, o que ele levou dela foi algo de mais valor. Sua dignidade, seu orgulho, sua humanidade. Ficara apavorada por um instante. Mais até do que o estupro, teve a mesma sensação de outrora: de já ter passado por aquilo tudo. Ele a deixara lá, depois que terminou. Sozinha, de joelhos no chão frio. Ela só queria que aquele pesadelo fosse exatamente um pesadelo. Chegara no seu prédio como que sem vida. Seu João a acompanhou até seu apartamento e sua mãe ao vê-la não segurou seu desespero. E nem ela. A viatura, chamada pelo porteiro veio, e foram todos até a delegacia. Seguiu-se o boletim de ocorrência, o exame de corpo de delito, o retrato falado. E só depois de três semanas, quando veio a notícia de que tinham encontrado e prendido o estuprador, é que ela conseguiu sair de casa. Nas semanas seguintes ela já estava trabalhando e estudando novamente mais aliviada por saber que aquilo, aquele monstro, pagaria pelo que fez. A mãe, os irmãos, os parentes, os amigos e as sessões de terapia a ajudaram a superar tudo. Nunca mais queria passar por aquilo de novo.

        Ela acordou. E como sempre passava seus delicados dedos entre seus fios negros e encaracolados. Isso enquanto bocejava para espantar o sono. Quantas vezes já fizera isso ocorreu-lhe de repente? Deixara para pensar nisso depois ou se atrasaria para o trabalho. O café da manhã com a mãe e os irmãos passara rápido. E ela gostaria que durasse mais. Teve um frio súbito na barriga quando veio o pensamento que não deveria sair. Achou que fosse a estafa do dia-a-dia e foi-se mesmo assim. Com uma sensação que algo ruim aconteceria. No trabalho tudo correu normalmente. Na faculdade os estudos e as brincadeiras ajudavam-na a espairecer. Foi quando ficou por última na volta para casa que aquele frio na barriga voltou. Tentou não se preocupar já que nada de tão grave tinha acontecido. Até aquela noite de agosto quando no meio do seu caminho um homem a abordou e lhe perguntou as horas. Onze e trinta e cinco respondia, mas parecia estar escrito em sua testa. Mal dera um passo, aquele homem lhe mostrava seu revólver de plástico e a conduzia para uma esquina. E ali o absurdo, o inconcebível, o crime ocorria. Deixada lá, depois que ele concluía seu hediondo ato, sem saber, ela se perguntava o porquê daquilo ter acontecido de novo. Chegava em casa e era como se sua mãe e toda a sua família tivesse sido violentada. Depois de todos os procedimentos na polícia, o isolamento foi, não apenas necessário, mas inevitável. A notícia que aquele homem havia sido preso trouxe-lhe alívio e coragem para seguir em frente. Contudo, sem total ciência, logo voltaria a sua perturbadora rotina.

        Acordava, tomava café da manhã, ia para o trabalho, depois para a faculdade, na volta para casa o estupro, seguia com o desespero junto à família, e o que era para ser o fim com a prisão do estuprador. Acordava, café da manhã, trabalho, faculdade, estupro, consternação, alívio. Acordava, café da manhã, trabalho, faculdade, estupro, consternação, alívio. Acordava, café da manhã, trabalho, faculdade, estupro, consternação, alívio.

        Então ele acordou. Uma luz fosca, que vinha de todos os lados, pinicava seus olhos como pequenas agulhas. Percebera que estava deitado e, à medida que sua visão foi ficando mais nítida, pode notar a sala fria e cinza em que ele estava. Espere, ele? Sim, estranhamente, a cada segundo, sentia que ele era ele. E aquela repetição de acontecimentos que havia vivido não lhe pareceu como um sonho, e sim como um filme que tinha visto. Então a cama em que estava deitado foi se inclinando aos poucos, dobrando-se para se assemelhar a uma poltrona. E pode ver cinco pessoas o encarando.

        - Pode me ouvir, sr. Rubens? - perguntou uma mulher com um uniforme todo branco do seu lado direito. Ainda meio grogue acenou com a cabeça apenas. - Pode me dizer seu nome completo? - ela insistiu.

        - É Rubens Lopes Moreira, disse ele automaticamente. Mas na cabeça dele ainda passavam imagens das amigas lhe apontando um rapaz da faculdade.

        - Sabe a data de hoje, sr. Rubens, e em que ano nós estamos? - perguntou um homem do seu lado esquerdo. Também usava um uniforme branco.

        - Hoje é dezesseis de junho de dois mil e cinquenta e um? - estava se lembrando aos poucos de tudo e tinha dúvidas quanto a data certa. Na reabilitação os dias parecem todos iguais, pensara com ele mesmo e foi como se um nevoeiro se dissipasse de repente.

        - Está tudo certo, isso é normal, disse outro homem. Este usava terno e gravata embaixo de um avental cinza. Ele estava perto de outros dois homens e de uma mulher. Todos com vestimentas executivas.

        - Muito bem, sr. Rubens, devemos seguir o protocolo - disse aquele de avental. - Hoje na verdade é dezoito de junho. Eu sou o promotor Denis Moura, aqui presentes estão o doutor Carlos Aguirre, a agente da policia Silvia Donizetti, e o seu advogado, o sr. Adriano Ferreira. Os dois auxiliares do doutor servirão de testemunhas. O sr. passou pela simulação do Projeto Empatya, segundo a lei Andréia da Silva de vinte de março de dois mil e trinta e nove. O sr. foi condenado por ter cometido três estupros e parte da pena era passar exatamente pelo que uma vítima já passou. O sr. vivenciou uma simulação baseada no relato da própria Andréia da Silva. O sr. se lembra de tudo agora?

        - Sim, respondeu. Só queria que aquilo terminasse.

        - Muito bem, seguindo com os procedimentos legais, o sr. entrará agora em condicional. Durante seis meses o sr. Rubens vai se reportar a cada segunda da semana a um agente da condicional e ao seu advogado para...

        E enquanto o promotor continuava a falar, Rubens se permitiu fechar os olhos por alguns segundos e voltar para o que achou ser sua vida. Não se importou com o fato de ser mulher, ali ele tinha algo que nunca teve: amigos, uma mãe e irmãos amorosos, um trabalho e uma educação decente. Mas era a vida de Andréia. E ele não queria tomar dela mais do que já tomaram. Não sabia ou não queria saber se era sua imaginação, ou outra coisa, mas vira Andréia sentada em um quiosque no shopping onde trabalhava. Ela gostava de almoçar sozinha para colocar as coisas em dia e ele se aproximara. Sentou-se na mesma mesa que estava e ela o encarou, perguntando-se de quem se tratava. Ele a olhou fixamente nos olhos, apesar do medo. E era a primeira vez que se sentia assim.

        - Você me perdoa? - perguntou. 

Comentários

  1. Sem qualquer tipo de pretensão espero que a história sirva de alerta pra quem nunca cometeu esse tipo de abuso ou pra quem já cometeu. Empatia é o mínimo que se possa ter, eu acho... E espero que quem sofreu essa violência, não se ofenda.

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