Eterno Enquanto Durar

        Aquilo que ela considerava seu mundo foi lhe tirado repentinamente. Para não esquecer, ela o refez  à sua imagem e quase semelhança.


          O céu estava um azul oceânico. Quando abriu a janela, ela viu apenas algumas nuvens navegando naquele celeste sem fim como se fossem pequenos barcos de algodão. O sol a tinha abraçado de imediato; suas mãos quentes tocavam sua pele alva e seu sorriso cintilante a chamava para sair. Contudo, ela lhe fez um sinal com a mão para que esperasse, pois não tinha feito seu desjejum ainda. Foi então tomar seu banho. Deixou que aquelas águas cristalinas purificassem seu espírito e perfumassem sua longa e esbelta silhueta. Ao terminar, abriu uma pequena janela e um sopro quente que entrou foi suficiente para secar corpo e cabelos. Só teve o trabalho de deslizar seus delicados dedos entre as longas madeixas negras e satisfazer seu penteado. De volta ao quarto, escolheu um vestido do seu guarda-roupa vinho escuro. Apenas o puxou com uma das mãos e vestiu-o. Era branco e longo com linhas amarelas e azuis que desenhavam margaridas uma junto à outra. Então, também da mesma maneira, puxou os lençóis da cama para arrumá-la e em poucos minutos estava tudo pronto.
        Desceu as escadas e passou primeiro pela sala. Foi em direção a uma grande poltrona preta onde um enorme São Bernardo, usando um suéter laranja e com um par de óculos apoiado no focinho, estava sentado lendo um jornal.
        - Bom dia, fofão! – disse ela lhe beijando o topo da cabeça.
        - Bom dia, Eliza, respondeu ele. Tinha uma voz grossa, porém, carinhosa. – Dormiu bem, minha querida?
        - Dormi sim, paizão! O que está lendo?  
        - Ora, vejam só o que inventaram, minha princesa: asas portáteis! Qualquer um agora pode comprar um par de asas e sair voando por conta própria!
        - Nossa, que demais! – entusiasmou-se ela. – Acho que vou querer um!
        - Se você for querer, sua irmã vai querer também e ela é muito nova, Eliza! – reprendeu ele.
        - Ah, deixa pai, eu cuido da Diana, não se preocupe, disse ela e um rosnado baixo e rouco começara a sair daquela enorme bocarra. Mas Eliza o suavizou afanando atrás de uma das suas orelhas. Deixou então seu pai e foi para a cozinha. Lá, uma ursa marrom com um avental xadrez e um lenço rosa claro na cabeça servia chocolate quente em uma caneca para uma pequena gata de pelo branco e de vestido amarelo que devorava avidamente biscoitos recheados um atrás do outro.
        - Devagar, Diana! – disse a rechonchuda ursa. Parecia a Eliza um enorme bicho de pelúcia. – Bom dia, querida; sente-se que eu já levo o seu leite.
        - Bom dia, mãezona! – beijou sua bochecha e sentou-se ao lado da caçula da família. – Cuidado gatinha, não coma demais ou você via inflar que nem um balão e sair flutuando pela janela!
        - Não vou não! – respondeu ela com a boca cheia. Havia farelo salpicado nos bigodes e tentava fazer cara de brava cerrando seus olhinhos redondos e verdes, mas logo começou a rir devido às cócegas que sua irmã lhe fazia.
        - Não faça cócegas nela Eliza, ela vai engasgar! – reclamou a mãe-urso. – Pegue mais pão, você está muito magra, Eliza obedeceu e logo voltou a brincar com a pequena felina.
        - Ei, gatinha, você viu o que criaram agora? – perguntou.
        - O quê? – lançou sobre Eliza suas duas luzes esmeraldas de curiosidade.
        - Asas portáteis! – respondeu com um sorriso maroto.
        - Asas potáteis! – tentou ela. – E pra que é?
        - Pra voar, bobinha! Você vai poder ir pra onde quiser, esclareceu Eliza, mas sua mãe se intrometeu.
        - Não coloque ideias na cabecinha fértil da sua irmã, Eliza!
        - Ah, eu quero asas potáteis! – gritou Diana para o lamento da mãe e o desespero do pai.
        - Eu avisei a Eliza! – veio uma voz forte da sala, porém, Eliza apenas ria. Um riso de felicidade e alegria. E não demorou para que os outros se divertissem com a ideia e deixassem que seus risos também voassem por toda a casa.
        Cerca de uma hora depois, Eliza anunciava para sua mãe que iria sair.
        - E vai pra onde, posso saber? – perguntou com uma expressão séria.
        - Ah, mãe, só até o parque e depois, quem sabe! – disse ela. – Está um lindo dia hoje, por que não saímos todos depois?
        - Hum... – respondeu a grande ursa apenas. – E por acaso vai encontrar com alguém neste parque? – perguntou, mas parecia saber a resposta.
        - Bom, quem sabe! – respondeu ela soltando uma risada.
        - E quando vamos conhecer esse alguém? – quis saber sua mãe ainda com uma expressão séria.
        - Em breve mãezona, em breve... – então, subitamente, o sorriso que Eliza estampava desvaneceu dando lugar a uma feição angustiada. Sua mãe se assustou.
        - Eliza, filha, tudo bem? O que foi, sentiu alguma coisa? – de fato sentira. No entanto, assim como fora, aquele sorriso radiante e alegre voltara como se nunca tivesse ido.
        - Calma, mãezona, eu tô bem, não é nada não...
        - Eliza, pode me contar qualquer coisa, filha. Você é adulta, mas pra mim sempre será aquele bebezinho lido de olhos claros que só queria meu colo... – Eliza então a abraçou; um abraço forte que ela esperava que contivesse tanto suas lágrimas quanto as da mãe.
        - E você sempre será a melhor mãe do mundo! E não se preocupe, está tudo perfeito, melhor não pode ficar! – disse ela deixando um longo beijo no rosto de sua mãe antes de sair para seu passeio.
        Mal havia colocado seus pés na rua, o sol a pegou e a chamou para dançar. E ela começou a rodopiar como um peão. As pessoas ao redor não se importaram, pelo contrário, sorriram e dançaram junto com ela como que combinado. Eliza parou subitamente quando percebeu que chegara ao parque; recuperou um pouco do equilíbrio e do fôlego e logo o viu. Sua imagem se distinguia de longe; ele era alto e elegante vestindo um terno azul-marinho; tinha a pele tão escura quanto uma jabuticaba e os olhos tão azuis quanto aquele céu sobre eles; e seu cabelo era um conjunto de finas tranças que chegavam quase na cintura.
        - Oi, meu príncipe!
        - Oi, minha princesa, senti saudades!
        - Eu também, disse ela e se abraçaram. O beijo foi tenro e apaixonado. O tempo pareceu parar por uns instantes e acelerava repentinamente. Aquele universo deixou de existir e só houve os dois por um momento. Mas quando abriram os olhos, estava tudo lá do mesmo jeito que havia deixado.
        - Está linda hoje, elogiou ele.
        - Você também!
        - Sabe, estive pensando... – começara ele a dizer enquanto caminhavam de mãos dadas sobre uma passagem de paralelepípedos vermelhos que dividia em dois uma paisagem absurdamente arborizada. – Faz ideia de quanto tempo estamos juntos?
        - Acho que desde sempre, respondeu ela com um riso; por quê?
        - Por que, minha princesa? Talvez seja a hora de nos casarmos, o que acha?
        - Casar! – espantou-se. – Mesmo, vamos nos casar?
        - Claro! Já que estamos juntos desde sempre como você lembrou! E nos amamos muito, então...
        - Então, claro! – gritou Eliza e abraçou seu príncipe. O beijo que se seguiu não fora tão longo quanto o primeiro, porém, foi tão apaixonado quanto. Os dois ainda seguiriam o passeio quando aquele lhe falou:
        - Só falta então conhecer seus pais...
        - Meus pais! – ela mesma estranhou seu espanto e deixou que seu amado continuasse.
        - Sim, seus pais. Você me disse certa vez que a alegria da vida de sua mãe era ver você de noiva, não é?
        - É sim, respondeu parecendo entrar em um transe. Tudo ao redor pareceu silenciar-se de repente, apesar de seu recém-noivo e das pessoas continuarem a falar.
        - Está tudo bem, meu amor? – perguntou.
        - Está sim, meu príncipe, respondeu ela imediatamente; podemos falar sobre isso depois? Quero só curtir o passeio.
        - É claro, coração, anuiu ele. E de mãos dadas seguiram por entre aquelas grandes e frondosas árvores com os pés sobre um tapete de relva esmeraldino até que o sol se vestisse de um laranja-rubro e desse lugar a sua alva e pálida cara-metade.
        Era o dia seguinte para Eliza. Como anteriormente, o sol mostrou seu sorriso amarelo-ouro e ela retribuiu com um marfim cintilante. Ela repetira seu mesmo ritual, no entanto, pensando no que tinha que fazer. Ela sabia que este dia chegaria, mas queria adiá-lo o máximo que podia. Na verdade, queria evitá-lo mesmo sabendo que não conseguiria por muito tempo. Desceu as escadas com um nó no peito, porém, tentou ao máximo disfarçar para que tudo continuasse do jeito que estava. Ela foi direto ao quintal e de lá os chamou:
- Família, gritou; venham para fora, rápido! – a pequena gata foi a primeira a aparecer; e perguntava sem parar: O que é? O que é? A rechonchuda ursa veio logo em seguida com uma expressão que temia pelo pior; já o bonachão São Bernardo foi o último, mas não o menos preocupado.
        - Mas o que foi agora? – perguntava ele esbaforido. – Algum acidente?
        - Não sei, respondeu a mãe quase desesperada; foi a Eliza que chamou todo mundo aqui!
        - O que é? O que é? – não parava de dizer a caçula.
        - Calma gente, só quis fazer uma surpresa, disse Eliza depois de rir deles próprios.
        - Uma supesa? Cadê a supesa, cadê a supesa! – repetia agora a gatinha.
        - Está bem aqui! – ela apontou para o seu lado direito onde havia quatro caixas de tamanho médio com asas desenhadas nelas e com os dizeres: Asas portáteis, todos merecem voar.
        - Eliza, o que você aprontou menina! – espantou-se a mãe.
        - Oba! Eu quero, eu quero! – gritava a pequena, contudo, seu pai deu a ordem:
        - Ninguém aqui vai usar estes... estas... coisas aí! – disse categórico. No entanto, Eliza tentou amenizar a situação.
        - Ah, pai, olha, não tem problema nenhum... – ela abriu uma das caixas e mostrou a eles um dos pares que tinha um suave degrade de lilás para um rosa. – Olha, aqui tem um regulador de altura, mexia ela em um botão do cinto ligado às asas; qualquer problema, ela entra em modo planador e desce tranquilamente com você, terminara de explicar, mas seu pai não pareceu se convencer.
        - Não sei não, Eliza, ainda me parece muito perigoso...
        - Não é não, rebateu ela; olha só quanta gente já usa! – ela apontou para cima onde havia dezenas de homens e mulheres pássaros voando pra cá e pra lá. Alguns de terno, indo para o trabalho; outros com sacolas voltando do mercado; e até alguns garotos dando rasantes nos telhados das casas. - Deixa eu colocar pro senhor ver, e antes que o pai pudesse protestar, ela já havia afivelado os cintos e ligado o aparelho. Um leve zumbido e lufadas de vento se seguiram, Eliza ajustou o regulador para a altura mínima de um metro e, em poucos segundos, seu pai estava no ar.
        - Oh... oh... Isso é... é...
        - Muito bom, não é! – disse Eliza.
        - Agora eu, agora eu! – gritava a gatinha e Eliza a colocou em um par de um acentuado laranja. Ela o ligou e logo já estava voando ao lado do pai. – Eu tô voando! Eu tô voando!
        - Sua vez, mãe, disse Eliza. Porém, a grande ursa parecia ainda hesitar.
        - Ah, Meu Deus, Eliza... Eu não sei se consigo... – disse ela, mas foi logo convencida pela família.
        - Venha, meu amor, disse o pai; não tem perigo mesmo!
        - Vamô, mamãe! – chamava a filhinha que já arriscava um voo mais alto.
        - Vem cá, mãe, eu te ajudo, Eliza prendeu nela um par de asas brancas com listras azuis, mas ela mantinha as mãos juntas e os olhos fechados.
        - Abra os olhos, querida, disse o São Bernardo e quando o fez, deixou-se surpreender por completo.
        - Meu Deus, não acredito!
        - Mamãe, cê tá voando que nem eu! – maravilhou-se a gatinha. Os três ficavam dando pequenas voltas ali no quintal antes que percebessem que Eliza não estava entre eles. Ela apenas os assistia, rindo e acenando. Teve que tomar cuidado para aquele seu regozijo não transformar-se em tristeza.
        - Mamãe, papai, vamô passeá, vamô! – pedia a pequena.
        - Calma filhinha, e a sua irmã... – atentou o pai.
        - Filha, você não vem? – indagou a mãe.
        - Vão na frente, estou logo atrás, disse ela.

        Tanto o pai como a mãe mencionou protestar, mas tiveram que ir atrás rapidamente da gatinha alada. Sua mãe ainda olhou para trás e Eliza fez um sinal que os alcançariam. No entanto, o que ela fez foi colocar as duas mãos no rosto e desatar a chorar. E como em uma reação em cadeia, todos aqueles sons, cheiros, o vento suave e morno chocando-se contra a sua pele foi-se esvaindo até que Eliza ficasse indubitavelmente só. Ela sentiu uma espécie de vertigem, como se flutuasse e vagorosamente pousasse em uma superfície macia e quente. Ela abriu seus olhos com certa dificuldade. Não pela claridade do quarto que era até pouca pelo final de tarde que se podia ver pela janela, mas pelas lágrimas que ainda molhavam seu rosto. Ela o enxugou com as pontas dos dedos, sentou-se na cama e permitiu-se ficar longos dois minutos em silêncio antes de ouvir o telefone chamando. Não teve pressa em atendê-lo, contudo. Ela pegou calmamente um porta-retratos do seu criado-mudo, onde ela estava com toda a sua família, e os admirou como se fosse a primeira vez que os via: seu pai bonachão com o tradicional suéter marrom e laranja e os óculos na ponta do nariz; sua mãe que parecia nunca largar aquele avental xadrez ou mesmo o lenço na cabeça; e ela logo abaixo abraçando a irmã caçula com aqueles vívidos e grandes olhos verdes. Eliza deu três beijos no retrato e o colocou de volta no móvel em cima de uma página de jornal datada de três meses atrás onde relatava um acidente de carro que vitimara o que Eliza sempre considerou todo o seu mundo. Ela então foi ao telefone que ainda chamava. 

Comentários

  1. Não saiu exatamente da forma como havia imaginado, mas achei melhor deixá-lo aqui fora do que aqui dentro. Talvez seja o mais próximo conto de fadas que escreverei.

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  2. O escritor nunca fica satisfeito com suas obras, mas lendo au passant me deixou em várias imagens poéticas.

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    1. É verdade, até que o texto tem um teor poético mesmo. Mas satisfeito, satisfeito nunca ficamos, faz parte né não Kollek, rs!

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