O Caminho do Guerreiro
Jorge aprendeu desde cedo que não é você que escolhe o caminho. Mas o caminho, por mais tortuoso que seja, é que o escolhe.
1
O inverno se fazia sentir no centro da
cidade. A chuva fina que caíra na manhã deixou as ruas e o clima mais frio e
úmido; e o vento que soprava por entre os pequenos e grandes prédios
completavam o serviço.
Jorge parecia não se importar.
De bermuda jeans, usando apenas uma
camiseta branca de manga comprida e um par surrado de tênis cinza nos pés sem
meias, corria de um lado para outro atravessando avenidas e calçadas, subindo e
descendo escadarias sem parar. Mas parava. Quando saia do seu ponto de partida
e quando chegava ao seu destino. Na verdade destinos. Jorge, nos seus treze
anos, trabalhava para seu Luciano, dono de um bar e de uma lanchonete chamada
Fast-Fome. Ele colocava entre oito e doze marmitas em uma caixa de isopor; e
Jorge, munido de uma lista de endereços, entregava as encomendas. A caixa era
grande para ele, porém, mesmo sendo magrinho, não reclamava do peso. Mesmo
porque à medida que as ia entregando, a caixa ficava mais leve, no entanto, o
volume no bolso aumentava. Além dos dez reais que Jorge recebia de cada uma,
havia também as gorjetas. O valor não era fixo. Ganhava cinquenta centavos, um,
dois reais e, às vezes, até cinco, mas não passava disso. A clientela também
era variada: entregava para camelôs, porteiros, jornaleiros e até mendigos. E
sempre fazia como fora lhe ensinado: agradecia.
- Esse é seu guerreiro! – diziam alguns.
- Obrigado, seu Pedro.
- Valeu, guerreiro, toma aqui! – diziam
outros sempre o tratando pelo apelido.
- Obrigado, Zé!
E ele corria, pois seu turno era
cronometrado. Chegava às oito no bar, seu Luciano preparava as marmitas até às
dez em ponto para Jorge entregá-las no máximo até meio dia e meia para poder
pegar o metrô, mais um ônibus e conseguir chegar na escola. E, ainda assim, vez
ou outra, entrava atrasado.
- Tá tudo aqui, seu Luciano, e também o
do Zé da Água que disse que vai acertar com o senhor o da semana passada, disse
ele.
- Ah, mas aquele me paga sim! – retrucou
com a testa e as bochechas vermelhas. – Aquele um vai me pagar de um jeito ou de
outro, completou e dispensou Jorge. – Agora vai, moleque, vai estudá que amanhã
tem mais!
- Tá, seu Luciano, até amanhã,
despediu-se e saiu a toda. E mesmo sendo tão jovem, vez ou outra perguntava-se
se toda a sua vida seria sempre assim, uma eterna maratona.
Quando chegava na escola, para ele, era
um outro mundo que adentrava. Apesar de gostar de um ou dois professores e de
ter um bom grupo de amigos e algumas paqueras, sentia falta da liberdade de ir
e vir que o seu trabalho lhe proporcionava. Se não fosse obrigado por sua mãe e
sua avó a frequentá-la, sequer passaria em frente. Mas ia. E passada as
dificuldades em português, história e algo em ciências, voltava para casa por
volta de sete da noite onde Alice, sua mãe e dona Lurdes, sua avó, já o esperavam.
Dona Lurdes trabalhava em uma cooperativa de costura, estava nos seus quarenta
e oito anos, no entanto, sua pele negra mal deixava transparecer; já Alice,
ainda com meros dezesseis, deu a luz a seu filho único. Ela sempre chegava
cansada também. As quase oito horas que ficava no caixa de um supermercado por
vezes a estressavam, mas sempre recebia Jorge com um beijo e um abraço.
- Vem aqui, meu homem! – dizia ela
orgulhosa. – Foi na escola hoje, né?
- Claro que sim, respondeu ele se
desvinculando do abraço apertado da mãe e ir ter com dona Lurdes. – Oi, vó!
- Fez tudo direitinho, meu filho? – lhe
beijou a testa.
- Fiz sim, vó!
- Olha o combinado hein, Jorge, ia
dizendo Alice; você pode trabalhar, mas tem que estudar também!
- E com boas notas, completou dona
Lurdes.
- Eu tenho boas notas, disse ele e
resolveu fugir, pelo menos, da cozinha. – Posso ir ver TV?
- Pode, o jantar não demora, respondeu a
avó.
- E eu vou ver seu caderno depois,
avisou Alice.
- Pode olhar! – respondeu ele já na
sala, aumentando o volume do aparelho para ver se esqueciam dele um pouco.
Não gostava muito das cobranças da mãe e
da avó, apesar de saber que as faziam porque o amavam. Porém, aquilo o remetia
a quase uma prisão como na escola. E nessas vezes, apenas nessas vezes, é que
se lembrava do seu pai. Logo quando nasceu, Adriano o via sempre, fazia chuva
ou sol. Porém, à medida que ia crescendo, as visitas proporcionalmente
diminuíam. Foi assim até seus dez anos quando soube que seu pai fora preso. Ele
então se ressentiu e, apesar dos pedidos dos seus avós, pais de Adriano, Jorge
sequer o visitou uma única vez. Agora era ele o homem da casa, como dissera sua
avó certa vez, e sempre tentava fazer jus a sua incumbência.
- Jorge, vem comer! – chamou Alice e foi
ele jantar com as mulheres da casa e da sua vida.
O dia seguinte manteve a sua rotina,
contudo, o sol apareceu e esquentou um pouco aquela manhã de inverno. Jorge
estava voltando para a lanchonete com uma marmita sobrando na caixa. Seu
Aderbaldo não estava naquele dia na banca de jornal e o rapaz que o substituíra
lhe disse que já havia almoçado. Jorge então corria de volta, mas alguém o
chamou:
- Menino! Ô menino! – um grito vindo da
calçada fez Jorge se virar para ver quem era. Ficara um tanto assustado com o
sujeito. Apesar da baixa estatura, era troncudo e o achara feio a princípio:
grossas sobrancelhas protuberavam da larga testa deixando-o com uma expressão
carrancuda. E o cabelo desgrenhado estranhamente preso a um pequeno coque, não
ajudava muito. Vestia um jeans surrado, uma camisa xadrez, sandálias nos pés e,
nas costas, carregava uma pequena mochila e curiosamente um bambu.
- Pois não, senhor? – era lembrado
sempre por Alice e dona Lurdes a tratar todos com respeito.
- Ô menino, tu que é o menino das
marmita? – perguntou o estranho.
- Sou sim, meu nome é Jorge, respondeu
ele um pouco mais tranquilo.
- Õ Jorge, tu tem aí uma marmita, não
tem não? Tô varado vindo agora do Rio...
- Olha, sorte do senhor que sobrou uma,
dissera ele. – Essa tem arroz, feijão, carne moída, abobrinha e cenoura. Tá
quentinha ainda, senhor!
- Õ Jorge, e quanto tu me dá isso aí?
- É dez reais, senhor, respondeu e
aquele rosto duro e com a barba por fazer silenciou-se por um minuto. Disse
então:
- Ô Jorge, tu não me coloca cinco, não?
Tenho só mais dez pra ir pra Minas... – pedia ele com a nota na mão. – Veja,
sou disso não, não sabe! Mas eu voltando, te acho aqui mesmo e te dou os outro
cinco!
Jorge não faria aquilo. Fora advertido
inúmeras vezes por seu Luciano para não vender fiado ou dar descontos. Mas algo
nos olhos daquele matuto o fez acreditar nele. Já tinha ideia do que fazer e só
esperava que o seu patrão não percebesse nada.
- Tá tudo bem, moço, olha aqui... – ele
então entregou ao estranho o último almoço do dia. E aquele lhe pagou os cinco
reais.
- Ô Jorge, fico na dívida com tu, tu tá
entendendo? – não, ele não havia entendido, já que era o sujeito que
tecnicamente ficaria lhe devendo. E apesar das feições em seu rosto não mudar,
Jorge notou certa alegria no tom da sua voz. – Ó menino, pega aqui!
O homem lhe entregou uma corrente que
Jorge não sabia exatamente o que era. Lembrava o crucifixo que sua avó usava,
no entanto, não havia nenhuma cruz pendurada, apenas contas fechavam o colar.
- Isso aqui eu tenho de coração, não
sabe? E assim que eu voltá, eu te pago minha dívida e tu me devolve?
- Tá, senhor... – disse Jorge sem saber
mais o que falar.
- Inté a volta, Jorge! E precisando, é
só pedir qualquer coisa, disse ele e ia se afastando quando Jorge o chamou.
- Senhor, qual é o seu nome?
- Ô menino, me chamo Ubiratan! – gritava
ele, mas sem se virar ou parar. – Precisando é Ubiratan!
Então desapareceu em meio ao trânsito de
pessoas e Jorge ficara parado ali por longos cinco minutos até se dar conta de que
estava atrasado. Consultou seu relógio, e quando viu que já era meio-dia e
quinze, correu. Chegando na lanchonete, mal teve tempo de falar com seu
Luciano.
- Olhe, Jorge: ninguém ficou devendo
hoje?
- Ninguém, seu Luciano... Tchau! –
despediu-se apressadamente, pegou sua mochila e saiu. Para que ele não
estranhasse nada, Jorge inteirou a venda daquela última marmita com a sua
gorjeta do dia. Exatamente cinco reais. Ficara chateado, é verdade, mas sabia –
de alguma forma – que tinha agido certo. Perguntara-se de onde aquele Ubiratan
havia saído e não imaginava que o veria mais cedo do que pensava.
Durante o resto do dia, na escola e no
caminho de volta para casa, Jorge ainda pensava naqueles cinco reais e no
estranho. Estava se lamentando de não poder comprar o pacote de salgadinhos e
mais um de balas que queria tanto. E não havia se decidido ainda se contava ou
não para a mãe e a avó do acontecido. Quando chegou e abriu o portão de casa,
estranhou que o sobrado de dona Maria estava às escuras, assim como, a casa de
Márcio e Isabel. Mas lembrou-se que todos eles, junto de seu Valdo, marido de
dona Maria, costumam ir aos cultos nas quartas. E como dona Lurdes e Alice
trabalham até as seis, elas só iam aos domingos. Contudo, os dois cômodos onde
moravam nos fundos também estava com as luzes apagadas. Ele apenas imaginava o
porquê não tinham chegado ainda; e ele não tinha a chave. Mas quando se
aproximou da porta, percebeu que ela estava semiaberta; e o vento frio que já
soprava naquele início de noite deixou sua pele arrepiada. Contudo, ele avançou
e entrou.
- Mãe? – chamou e, quando a viu, foi
como se estivesse assistindo a um filme. Ele não reconheceu o homem que estava
em cima dela com suas mãos em seu pescoço. Não viu a avó, pois seu corpo estava
atrás dele, próximo a geladeira, saberia depois. Queria chamá-la e a mãe, dizer
que tirara dez na prova de matemática, mas não conseguiu. Todavia, aquele homem
falou com ele.
- Garoto, fica bem aí, disse. Estava
escuro, mas Jorge pode ver seus grandes e frios olhos fixos nele. Ele poderia
morrer ali ao lado de Alice e dona Lurdes, no entanto, algo dentro dele não
deixou. E fez o que sempre tinha feito durante sua jovem vida: correu.
- Garoto, volta aqui! – gritou o homem,
mas Jorge não o obedeceu. Ele largou a mochila ali mesmo no quintal e acelerou.
Havia naquele bairro vielas que ele imaginara que o assassino não conhecia. Ele
olhou para trás e não viu sinal dele. Conseguiu chegar até a praça onde tinha
um Fusca azul abandonado que ele e os amigos usavam para brincar – fazendo de conta
que viajavam para algum outro lugar. Entrou, se agachou atrás dos bancos
dianteiros e mais uma vez desejou que aquela carcaça o levasse para algum lugar
bem longe dali.
2
O dia seguinte amanheceu lindo. O sol
claro que iluminava aquele cenário, espantou todas as nuvens dos dias
anteriores. E apesar de haver pássaros cantando e algumas crianças brincando na
rua, ainda estava frio. Estava frio naquela praça, dentro daquele carro velho
e, principalmente, dentro de Jorge. Quando acordou, não se lembrara se sonhou,
porém, lembrou-se de sua mãe sendo estrangulada e o choro veio, copiosamente.
Não soube quanto tempo durou seu pranto, mas quando acabou, sabia que não podia
ficar mais ali. Saiu olhando para os lados e foi para casa ou o que era sua
casa. Seria difícil, mas se alguém soubera o que aconteceu e chamou a polícia,
então haveria chance de encontrar o assassino da mãe e da avó. Jorge, no
entanto, andava e chorava e quando estava a alguns metros de sua casa, pode ver
duas viaturas. Suas lágrimas correram com mais força, contudo, além da tristeza
havia alívio também.
Por pouco tempo.
Faltando não mais do que cinco metros de
dois policiais, ele reconheceu um deles. Jorge nunca se esqueceria daqueles
olhos grandes e frios como aquela manhã. Ele pensou em gritar, correr e atacar
o homem que literalmente tirou a vida de sua mãe com as mãos. Ao invés,
escondeu-se atrás de um carro e esperou que ele se afastasse o suficiente para
que pudesse correr mais uma vez para longe dele. Não estava com sua mochila,
mas sua carteira estava no bolso. E quando chegou ao ponto de ônibus e pegara a
primeira condução que passara ali, só pensou em um lugar onde podia se sentir
seguro naquele momento: a lanchonete de seu Luciano.
Cerca de uma hora depois, Jorge havia
chegado a Fast-Fome. Seu Luciano logo lhe chamou a atenção pelo atraso.
- Jorge, isso são horas? Com tanta coisa
pra eu fazer tu ainda me... – ele cessou sua queixa quando percebeu que Jorge
não parava de chorar.
- Ele matou elas, seu Luciano, matou
elas... – Jorge se desesperava em prantos e os poucos fregueses que estavam ali
se impressionaram. Seu Luciano ficou alguns segundos sem saber o que fazer,
então pegou Jorge pelo braço e o levou para os fundos da lanchonete.
- Jorge, que história é essa? Quem matou
quem, menino?
- Minha mãe, seu Luciano! Ele matou
minha mãe e acho que minha vó também... Ele matou, eu vi... – tentava ele
cessar seu choro, mas era a única coisa que o aliviava naquele momento.
- Meu Deus, Jorge... Isso foi ontem,
foi?
- Foi... Eu tinha chegado da escola e
vi ele... – as lágrimas de Jorge não paravam de derramar e seu Luciano achou
melhor tomar alguma providência.
- Tá, Jorge, não se avexe, tu fica aqui
e eu ligo pra polícia, visse!
De súbito, Jorge congelou. Ele arregalou
os olhos para seu Luciano que se assustou com sua reação.
- Mas o que foi, Jorge? Eu chamo a
polícia, não se aperreie...
- Não, seu Luciano, a polícia não,
suplicou ele.
- Mas como não, Jorge! Tu não disse que
mataram tua mãe e tua avó! Como é que...
- Mas foi um polícia! – elevou sua voz.
– Foi um polícia que matou elas, seu Luciano... – e seu choro voltou.
- Mas Jorge, menino... – seu Luciano
coçava sua cabeça calva sem a menor ideia do que fazer. Ele se sentia
atrapalhado com o desespero de Jorge e achou melhor guardá-lo, por assim dizer.
– Olha, Jorge, fica um pouco ali e eu vou ver o que faço. – ele levara Jorge
para um pequeno depósito bem nos fundos da cozinha.
- Seu Luciano...
- Tu fique aí, Jorge e descansa um
pouco. Eu já volto.
Deixou ele entre produtos de limpeza e
alguns utensílios de cozinha. Havia sacos de estopa no chão e Jorge sentou-se
ali. Ele não queria mais chorar, porém, as lágrimas vieram mais uma vez.
Inevitavelmente soube que nunca mais receberia os beijos tenros de dona Lurdes e
nem os abraços apertados de Alice. Suas lágrimas pareciam pesar e acabou se
deitando ali mesmo. E quase sem
perceber, o sono veio, inexoravelmente, e ele agradeceu. Levou-o a uma terra
desconhecida, longe da dor, do medo e da solidão.
Quando acordou, teve que se esforçar
para se lembrar onde estava. E quando se lembrou, fez o contrário. Esforçou-se
o que pode para esquecer. Ele saiu do depósito para ir ao banheiro e consultou
as horas. Surpreendeu-se quando viu que eram duas e quinze da tarde; não achou
que dormiria tanto. Depois que terminou suas necessidades, foi procurar seu
Luciano. Indo em direção ao bar, o vira bem na porta conversando com um
policial. Ele parou de repente e recuou dois passos parecendo prever o pior. E
quando viu que ele falava com aquele mesmo policial de olhos grandes, deu meia
volta e correu. Passou pela cozinha, pelo depósito e saiu por uma porta bem nos
fundos da lanchonete onde servia de descarte para o lixo. Ele correu em um
estreito vão entre dois prédios e ganhou o calçadão lotado de pessoas. E ele
continuaria correndo se um chamado já familiar não o tivesse interrompido.
- Ô menino, ô Jorge! – gritara não muito
longe. Jorge se virou, ainda com medo, mas aliviou-se. Era Ubiratan. – Tá aqui,
olha o que lhe devia, visse! Minha palavra é de honra, menino, pode pegá!
Jorge automaticamente pegou a nota de cinco
reais das mãos dele, mas não queria ficar ali. Aquele homem poderia achá-lo e
resolveu se apressar.
- Obrigado, moço... eu tenho que ir... –
disse ele, mas Ubiratan o deteve.
- Mas menino Jorge, tu tem minha
corrente? Te deixei como garantia, não deixei? Tu tá com ela?
Ele não a tinha, contudo, havia se
recordado onde o objeto se encontrava: estava em sua mochila que largara em sua
casa durante sua tragédia. Estava indo as lágrimas de novo quando a imagem de
sua mãe lhe veio a mente, porém, Ubiratan o interrompeu.
- Ô Jorge, não se assuste menino, eu sou
um bronco mesmo, mas aquela corrente tem valor daqui pra mim, tu entende? – ele
bateu com a mão direita no peito e, talvez para cortar seu choro, Jorge lhe
respondeu abruptamente.
- Tá na minha casa!
- E onde é, tu me leva lá? – perguntou
ele e Jorge, para sair logo dali, assentiu, apesar de não querer voltar.
- Tá, vamos, mas tem que ser agora.
- Pois não, Jorge. Vem comigo...
Os dois seguiram pelo calçadão e
entraram em uma ladeira à esquerda. Quando chegaram perto de uma Honda de cento
e vinte cinco cilindradas, praticamente toda preta, Ubiratan falou:
- Veja, Jorge, foi por isso que paguei
tu tão rápido! – orgulhou-se enquanto montava na moto e entregava um capacete
para Jorge. – Um conhecido meu me devia um favor e me deu essa belezura aqui em
troca! É ou não é uma belezura?
- Tá, vamos logo! – interrompeu ele
bruscamente já montando na garupa. Jorge ainda tinha medo que o assassino da
mãe e da avó pudesse encontrá-lo. Ubiratan notou seu desespero, mas não quis
comentar nada ali. Ainda não, pelo menos.
- Tá, menino, tá certo... Tu sobe aí e
prende bem na cabeça, visse! – disse ele. Os dois partiram sem olhar para trás.
Porque se olhassem, veriam seu Luciano correndo e chamando por Jorge enquanto
olhos frios e atentos os observavam, logo atrás, imaginando para onde aqueles
dois estariam indo.
Cerca de quarenta e cinco minutos
depois, eles tinham chegado. A viagem foi rápida e silenciosa. Apesar das
tentativas de Ubiratan, Jorge manteve-se calado todo o caminho. E mesmo ali, de
frente para o portão da sua outrora casa, também estava quieto e imóvel.
- Tua mãe tá em casa, Jorge? – perguntou
e Jorge foi às lágrimas novamente. Não disse nada e antes que Ubiratan lhe
falasse algo, ele abriu o portão bruscamente e entrou. Ubiratan não foi
imediatamente atrás. Teve uma estranha sensação e seguiu o conselho do seu
instinto. Deixara sua mochila na moto, mas levou consigo seu bambu de pouco
mais de setenta centímetros de comprimento. Vira Jorge sumir por aquele
corredor estreito e, ao tentar alcançá-lo, encontrou uma pequena casa de dois
cômodos com a porta da cozinha aberta. Ele prendeu sua mão esquerda no seu
instrumento e entrou. Jorge estava parado no meio do quarto. O recinto estava
um tanto desarrumado, contudo, ele continuava ali e em silêncio. Quando
Ubiratan se aproximou dele, ele moveu-se, repentinamente e saiu. Ele tencionou
segui-lo, porém, algo o deteve. Percebeu marcas no chão do quarto e depois mais
uma na cozinha. Ambas desenhavam um corpo, mas não especificavam se era de homem
ou mulher. Porém, imaginou que uma delas pertencia a mãe de Jorge e soube
imediatamente o que havia acontecido. Jorge então voltou.
- Olha, tá aqui, disse e entregou-lhe
seu colar de contas. Sem dizer mais nada, saiu de novo e Ubiratan o seguiu.
- Ô menino Jorge, tu espera! – pediu lhe
segurando o braço. Ele então o encarou com os olhos molhados. – Jorge, eu sei o
que tu tá passando! Eu já passei por tudo isso também... Tu viu quem foi? –
Jorge respondeu apenas acenando a cabeça. – E tu fugiu, não foi? Mas tu não
procurou os home? Eles vão pegá essa cabra e...
- Não! – interrompeu. – Foi um polícia!
Foi um polícia que matou minha mãe e minha avó... eu vi ele depois... eu não
posso...
- Ô Jorge, retomou ele; olha, eu falo
isso pra tu: nem todo polícia é bandido, visse! Tem polícia que é boa sim... E
tu vai ter que confiar em alguém pra pegá esse cabra! Tu confia em mim, Jorge?
– novamente ele respondeu com a cabeça. Não sabia o porquê, mas algo o fazia
acreditar naquele matuto. – Olha, Jorge, vamu nóis até a delegacia, visse! Nóis
aciona os home pra fazê eles pegá esse miserável, tu vai ver!
Jorge secou seus olhos e ao lado de
Ubiratan ia saindo daquele lugar que se tornara um túmulo. E ainda no corredor,
depararam-se com aquele sujeito. Ele estava de farda, mas o que mais assustava
era a sua pele de um branco pálido, quase fantasmagórico. E aqueles olhos
estranhos, frios, sem alma, estavam fixos de novo em Jorge como naquela noite.
Ele tremeu e colocou-se imediatamente atrás de Ubiratan. Então aquele olhar
inclemente mirou no único obstáculo entre ele e Jorge.
- Senhor, boa tarde, disse com polidez,
mas a voz meia rouca dava um tom ameaçador. – Eu vou ter que levar o menino.
- Tu qué leva o menino pra onde? –
perguntou Ubiratan apertando seu bambu. Pela reação de Jorge, ele soube de quem
se tratava.
- Isso é assunto da polícia, senhor!
Entregue o garoto, ele não é nada seu!
- E como tu sabe? Jorge é meu amigo,
visse! E tu não precisa se avexá, eu mesmo levo ele pra polícia e se tu quisé,
pode vir junto!
- Me dá o menino! – exigiu ele sacando
sua trinta e oito. Ubiratan não se acanhou.
- Jorge, eu mandando tu se abaixa, tu tá
entendendo? – ordenou ele e Jorge assentiu.
- Eu não vou pedir de novo! Me entrega o
moleque e eu deixo você viver! Agora! – gritou o assassino com o dedo no
gatilho.
- Agora, Jorge! – também gritou Ubiratan
e Jorge jogou-se no chão. E ele mal acreditou no que viu. Pareceu-lhe que
Ubiratan tinha um relâmpago guardado naquele bambu de tão intenso fora seu
brilho. Aquilo desenhou um arco completo
no ar e quando o homem se deu conta que a sua mão empunhando o revólver estava
no chão, gritou de incredulidade e desespero. Jorge também ficara estupefato e
depois percebera que o que Ubiratan tinha nas mãos era na verdade uma enorme
lâmina. Ele nunca tinha visto algo parecido com aquilo.
Aquele homem ajoelhou-se e esbugalhou
mais os olhos de tanta dor. Ainda espantado, não conseguia sequer gritar mais.
Ubiratan então colocou-se atrás dele e pousou sua lâmina sobre seu ombro
direito.
- Jorge? – chamou e ele levantou-se. –
Pode vir, Jorge, de frente pro cabra!
Ele não entendeu o que Ubiratan queria
fazer e, a passos lentos, o atendeu. Contudo, mesmo de joelhos e ensanguentado,
ele ainda sentia medo daquele sujeito. E começara a sentir medo de Ubiratan
também.
- Agora, cabra, tu olha pra ele! –
ordenou, mas o homem continuava a chorar. – Olha pro menino! – levantou a voz e
então ele obedeceu. – Tu diz pra ele agora, diz o que tu fez com a mãe e com a
avó! E se tu mentir... – Ubiratan o ameaçou inclinando mais a espada. Ele
obedeceu mais uma vez.
- Eu... recebi ordens... Eu não tive
escolha... sou uma vítima tanto... – ele tencionou olhar para Ubiratan que lhe
golpeou as costas com uma das mãos.
- Deixa de amolação, cabra! Tu fala tudo
pro menino, fala como tu desgraçou a vida dele antes de tu deixá este mundo!
Tanto o assassino quanto Jorge
assustaram-se com aquelas palavras. Mas Jorge manteve-se quieto enquanto o
homem de olhos grandes e frios começava enfim sua confissão.
- Eu disse, me mandaram fazer isso...
Foi seu pai! – então sim ele encarou Jorge enquanto tentava estancar seu
sangramento. – Foi por causa do seu pai! Disseram que ele devia pro Mateus...
ele demorou pra pagar, então ele me mandou aqui... Eu, eu não queria... eu...
- Cala a boca, cabra! – mandou Ubiratan.
Viu nos olhos de Jorge raiva e tristeza sendo derramados e dirigiu-se a ele. –
Jorge, tu decide! – disse e ele o encarou. – Tu qué justiça pra tua mãe e tua
avó? Tu decide o destino desse cabra!
Então aqueles olhos grandes e agora
desesperados encararam Jorge. Ele também o encarou pronto para dar sua
sentença, mas de repente, Alice colocou-se entre eles. Uma lembrança de sua mãe
tão vívida que pareceu que ela nunca o havia deixado.
- Jorge, olha bem pra mim e me ouve,
dissera ela pouco mais de três anos atrás quando exatamente Adriano tinha sido
preso. – Me promete... não, me jure que você nunca vai seguir o exemplo do seu
pai! Cê me escutou, Jorge? Me jure agora, por mim e pela sua avó!
E ele jurou. Jurou naquele dia, de uma
estranha tarde quente, e jurara de novo naquele momento.
Sua mãe se fora mais uma vez e ele
estava novamente de frente ao seu assassino. A dor que ele sentia ali não era
maior do que a do próprio Jorge, contudo:
- Eu quero justiça sim, Ubiratan, mas
não sou um matador como esse aí, disse enxugando seu rosto. Ubiratan o encarou.
Não como se olhasse uma criança e sim um adulto. Ele tirou sua espada da mira
do pescoço do policial, mas lhe deu um golpe em sua nuca fazendo-o desmaiar.
Rasgou a manga de sua própria camisa e amarrou no pulso decepado para estancar
o sangramento.
- Pode deixá, Jorge, disse ele. Depois
de guardar sua katana na bainha de bambu, colocou o homem sobre seu ombro
esquerdo sem qualquer cerimônia e seguiu em direção a rua. Jorge foi atrás e
quando os dois chegaram na calçada, depararam-se com um Gol branco. Ele estava
com a porta do motorista aberta e ambos concluíram que se tratava do carro do
policial. Ubiratan pediu a Jorge que retraísse o banco para que ele pudesse
deixá-lo na parte de trás do veículo. Falou com ele então:
- Olha, Jorge, tu tem pra onde ir?
- Eu tenho uma tia que mora em São
Bernardo... Acho que vou ter que ficar com ela... Mas você já vai embora?
- Não tem outro jeito! Vão me colocar na
cadeia por causa desse aí e de outros... e eu ainda tenho umas coisa pra fazê
antes de pagá todos meus pecados... – então ele se ajoelhou em frente a Jorge e
lhe disse: - E tu tem que fazê esse cabra pagá os dele, visse! Tu chama os
home, mas os home bão, pra dá pra esse cabra o que ele merece!
Jorge estava a ponto de chorar
novamente, porém, a voz firme de Ubiratan fez
com que ele as recolhesse.
- E olha, Jorge, tu é menino, mas já é
um home, visse! Muito mais home que muito cabra que eu conheço... Tua mãe e tua
vó tão em paz agora sabendo que tu tá no caminho certo!
- Eu vou te ver de novo? – perguntou um
tanto emocionado.
- Se Deus quisé ele cruza nossos caminho
outra vez, respondeu e ambos se abraçaram. Um abraço apertado como de amigos,
de irmãos, de um pai e um filho. Foi então em direção a sua moto, prendeu o
bambu perto da mochila e a montou. – Não te esquece, Jorge: se Deus quisé, ele
cruza nossos caminho de novo, é só tu não se desvia do teu!
O escapamento pareceu explodir e, alguns
segundos depois, Jorge não o via mais. Algumas pessoas ouviram aquele barulho
estridente e se aproximaram dele. Duas delas o reconheceram.
- Jorge, é você? – espantou-se dona
Maria. – Onde cê tava, meu Deus! Sua mãe e sua avó... – e sem saber mais o que
dizer, o abraçou.
- Jorge, tava todo mundo te procurando,
alardeou seu Valdo. – A policia achava até que você também estava... – ele se
interrompeu, mas continuou logo em seguida. – Ô menino, a gente sente tanto...
Mas vão achar quem fez isso com elas, você vai ver...
- Eu sei quem matou minha mãe e minha
avó, disse Jorge e os dois e mais três pessoas que tinham se juntado ali se
assustaram com sua declaração. Não apenas com o que ele lhes disse, mas também
o modo: extremamente lacônico, sério, com os olhos fixos como se ainda tentasse
ver Ubiratan e sua moto.
- Cê sabe, Jorge? – questionou-o seu
Valdo um pouco incrédulo.
- Sim, foi aquele homem ali, apontou ele
para o Gol branco. E ao se aproximarem, duas das mulheres gritaram de susto
achando que aquele estranho com uma farda estava morto. Havia uma quantidade
enorme de sangue em sua roupa, contudo, houve um movimento de cabeça o que os
aliviou um pouco.
- Jorge, quem é esse? – perguntou dona
Maria, mas não obteve resposta. Jorge continuava parado, olhando para frente.
- Eu vou chamar a polícia! – avisou seu
Valdo e correu para sua casa.
E enquanto todos ali tentavam entender o
que havia acontecido naqueles últimos dias, Jorge pensava quando ele iria se reencontrar
com aquele estranho que praticamente salvara sua vida. Ele entendeu de repente
que a única forma de vê-lo de novo e de retribuir o que Ubiratan tinha lhe
feito era seguir seus passos não importando quanto tempo levasse.
É uma história de origem, percebi quando terminei. Tive a ideia deste personagem - Ubiratan - e resolvi escrever um conto a parte; um universo expandido, digamos. No futuro, escreverei só sobre Ubiratan.
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