João e Branco

Amizades incondicionais ultrapassam barreiras. Sejam elas de pele, idade, gênero e espécie.


Gosto muito de histórias. De lê-las e principalmente de contá-las. Uma em particular, que sempre contava para os meus filhos, depois para os netos, contarei para vocês. Sobre um grande amigo meu, que vive eterno em meu coração, e de como ele me salvou a vida.
         Aconteceu por volta dos meus dez anos de idade, na minha cidadezinha natal, em Santa Joaninha. Cidadezinha mesmo com pouco mais de uma centena de habitantes, a igreja, que deu nome a cidade na praça central onde se realizam as quermesses e, claro, todos se conheciam.
         E foi exatamente nesta época que se deu o ocorrido
         A cidade toda se movimentava para aprontar o que, para mim até hoje, é o melhor arraial do interior. E como eu não conseguia sossegar até o começo das festividades, ia da minha casa até a Praça do Sabiá ver o pessoal montando as barracas e colocando os enfeites. Eu e o meu amigo, o Branco.
         Foi curioso como eu e ele nos conhecemos. Eu vivia pedindo para meu pai e minha mãe um cachorro simplesmente porque achava muito legal ter um – coisa de criança. Mas meus pais viviam repetindo: “cachorro dá trabalho!”; “quando ele crescer, ocê vai enjoar dele!”. Eu ouvia e não escutava. Quando Rosária, a cadela da vizinha, uma pastora-alemã bonita, deu cria, fui correndo lá ver se ela dava um. Mais um pouco eu não conseguia. Rosária teve seis filhotes e foi justamente o sexto que sobrou. Dona Marta me falou, na época, que ninguém queria ficar com ele. Ele tinha nascido diferente dos demais, todo branquinho, os olhinhos e o focinho vermelhinhos igual cereja. Parecia feito de neve como aqueles bonecos que a gente via nos cartões-postais da loja do seu Jaime. E mesmo depois de crescido, continuou branquinho. Sem saber, me apaixonei por ele na hora. Dona Marta disse que não fazia mal se eu não o quisesse porque, segundo ela, tinha nascido com algum tipo de doença. Para mim não era doença, parecia coisa de Deus. Disse a ela que o levava assim mesmo e quase chorei para convencê-la, até que ela deixou. Fui correndo pra casa com ele nos braços, igual um bebê, não vendo a hora de mostrar para meus pais. Quando cheguei em casa e mostrei para minha mãe, ela levou um susto de surpresa e estranhamento por ele ser tão branquinho; meu pai, além do estranhamento, disse que não queria cachorro em casa. Mas eu bati o pé. Cabeça-dura que era e sou, não larguei do Branco até eles deixarem eu ficar com ele. É claro que um pouco de choro ajudou também; mas, enfim, o Branco ficou comigo. E, desde então, não desgrudávamos um do outro, igual unha e carne, como dizia minha avó.
         Mas voltando a história: Branco e eu estávamos fazendo nossa ronda diária pela pracinha, correndo pra lá e pra cá, quando Mariana apareceu – minha primeira paixão! Eu ficava bobo sempre que via aquela menina, levara diversas broncas da professora por causa disso. Mas ela era tão linda: a pele de um alvo-rosado (quase tão alvo quanto do meu amigo); os cabelos pretinhos e lisinhos; e os olhos tão azuis que doía de ver. Ficava pensando se eu, um pretinho caipira, teria alguma chance com uma menina que parecia saída de um conto de fadas. Mesmo assim, ia falar com ela.
         - Oi, Mariana!
         - Oi, João, respondia sempre com um sorriso meigo.
         - Tá ficando bonita a praça né? – perguntei.
         - Tá sim...
         Como todo ano tinha quadrilha e sabia que ela ia participar desta, ficava matutando dia a dia num jeito de convidá-la para ser meu par; e quando achei que tinha encontrado coragem...
         - Então, Mariana, ocê vai dançá quadrilha esse ano?
         - Vô, mas sabe como a praça ficava mais bonita?
         - Não... Como?
         - Com rosas!
         - Rosas?
         - É, rosas vermelhas! Ia ficá tão bonito se enfeitasse a praça com rosas vermelhas!
         Até hoje não sei de onde ela tirou essa, mas em toda Santa Joaninha só tinha um lugar onde encontraria rosas vermelhas: no sítio do seu Everaldo. Foi aí que me bateu uma ideia.
         - Bom, Mariana, eu já vou indo. A gente se vê depois...
         - Tá, João. Inté!
         Eu nunca vou saber exatamente porque fui fazer aquela loucura – por ser muito jovem ou por estar muito apaixonado! Depois que me despedi de Mariana, fomos Branco e eu correndo até o sítio do seu Everaldo ver se conseguíamos algumas rosas. Minha ideia, porém, não era enfeitar toda a pracinha e sim dar um buquê – como aqueles de noiva – para Mariana. Na minha cabeça, tava tudo ensaiadinho: se eu desse um buquê de rosas vermelhas para Mariana, ela aceitaria ser meu par na quadrilha.
         O sítio ficava bem afastado do centro da cidade. Para chegar lá tinha que andar quase trinta minutos pela Rua Cordério Souza, uma longa estrada de terra; entrar no meio do mato antes de chegar no cruzamento com a Rua Guachupé; atravessar com muito cuidado o Riacho do Bom Jesus, que cortava parte da cidade; andar mais um pouquinho no meio do mato e pronto, chegávamos no sítio, justamente pela parte de trás, que era onde ficava a plantação de rosas. 
         Ninguém entendia porque seu Everaldo não dava ou mesmo vendia as rosas. Minha mãe falava que ele só as plantou para agradar a esposa, dona Luzia. E, quando dona Luzia morreu – um problema no coração, se me lembro bem – aí sim não quis dividir nada com ninguém. Mas vocês sabem não é, criança ainda e apaixonado pela garota mais bonita da cidade, não via mal algum em pegar algumas.
         Aproximei-me sorrateiramente do canteiro de rosas. Tinha que subir um pequeno barranco até a cerca que o protegia. Havia um pequeno buraco provocado pela podridão do riacho quando enchia em época de chuva. Dei uma olhada e não vi sinal do seu Everaldo. Então, estiquei o braço e comecei a arrancar as rosas, o que não era um trabalho tão fácil devido aos espinhos. É para se pensar algo assim: por que uma flor tão bonita tem que ter espinhos? Bom, quando já tinha umas quatro na mão e estava prestes a pegar mais uma, ouvi, de longe, um grito que me gelou a espinha: “Tu tá fazendo o quê, muleque?” – era seu Everaldo! Com o susto repentino, não pensei em mais nada, chamei o Branco, fiquei com as rosas que tinha na mão e saí correndo desembestado de lá. Nem sei se o seu Everaldo veio atrás da gente; desci aquele barranco que nem boi desgovernado. Aí, já viu. Criança assustada, ainda mais fazendo coisa que não devia, só podia sair besteira.
         Quando se atravessa o riacho, tem que ser com muito cuidado porque umas pedras que tem por lá, molhadas, ficam igual sabão; e como passei correndo, não teve outra: escorreguei, bati com a cabeça em alguma pedra já perto da margem e desmaiei na hora. Ali, Deus pôs a mão. Em mim e no meu amigo e salvador. O que se seguiu depois, narrarei do que imaginei que o Branco fez e do que eu soube depois dos relatos dos amigos da cidade.
         Depois que eu me espatifei no chão – com um corte feio na testa e começando a sangrar pra burro – Branco ficou um tempão latindo e me lambendo pra ver se eu acordava ou, pelo menos, fazia algum movimento. Como não atava nem desatava, Branco saiu correndo em direção ao centro de Santa Joaninha. Ele sabia de cor e salteado todos os caminhos de tanto andar comigo. Chegando, foi primeiro ao mercado do seu Antônio e da dona Maria Lúcia, lugar onde sempre tinha bastante gente. Entrou latindo que nem louco tentando atrair a atenção de alguém, mas esse povo... Eu já disse que dona Marta achava que o Branco tinha nascido doente; e, se dona Marta achava alguma coisa, a cidade inteira também achava!
         - Sai pra lá, bicho feio! – enxotou o seu Zé, um dos nossos vizinhos e também de dona Marta.
         - Xô, xô! – ajudou o seu Antônio.
         Vendo que ali não ia conseguir nada, Branco saiu correndo e encontrou o armazém do Tonho Tropeço.
         - Fora do meu armazém, animal do belzebu! – gritou e com um pedaço de pau na mão!
         Branco, tadinho, não sabia mais pra onde correr. Ainda bem que, nesse horário, a praça estava cheia. Ele, então, foi pra lá e começou a latir pra tudo quanto é lado e pra todo mundo. Mas o povo ou saía correndo achando que ele tava bravo – e tava mesmo – ou enxotava como se ele fosse um vira-lata qualquer. Olha, amo minha cidade e sempre amarei, mas tem hora que só por Deus! Fiquei imaginando se Branco fosse gente e desse jeito mesmo, diferente. Será que correriam ou expulsariam ele também? Então, Deus, de novo, colocou um anjo na frente do Branco, meu anjo, minha Mariana. Ele a achou e não parou de latir um minuto.
         - Que foi, Branco? Cadê o João? – perguntou ela, mas claro o Branco só latiu. A Mariana, apesar de estranhar ele um pouco, não tinha ódio ou medo e sim dó dele ter nascido daquele jeito. Acho que gostava dela também por isso.
         - Não chega perto desse cachorro, Mariana! – disse seu Robson, pai de Mariana; mas o Branco continuava a latir.
         - Pai, acho que aconteceu alguma coisa com o João, não tô vendo ele...
         - Esse cachorro é louco, filha; cadê aquele muleque que deixa esse bicho solto? – e o Branco se afastava cada vez que latia pra ver se alguém o entendia.
         - Olha, pai, disse Mariana; aconteceu alguma coisa com o João... Ele quer que a gente vá atrás dele! Vamô, pai!
         Seu Robson mal teve tempo de dizer “péra menina” quando saiu atrás dela e do Branco, que só pensava em ajudar o seu único amigo naquela cidade. E foram: Branco na frente, Mariana logo atrás com seu Robson bem de perto e com Chumbinha e o irmão que resolveram seguí-los mais pela curiosidade do que outra coisa. Há tantas, chegaram no matagal perto da Rua Gachupé; aí, Mariana e os demais pararam, enquanto meu amigo se enfiou no mato.
         - Pai, o João deve de tá lá, disse Mariana.
         - Tá, espera aqui, disse seu Robson que, num momento de lucidez, chamou os dois que tinham vindo junto e se embrenharam no mato. Andaram aquele bocadinho e logo deu pra ver o riacho e o moleque arteiro estirado na beirada, com seu cachorro do lado, que não parava de latir. Os três foram correndo mais brancos que fantasma em dia de finados. Seu Robson viu que eu estava sangrando muito e se aproximou; quando percebeu que eu ainda respirava, mandou o Chumbinha, o encanador oficial da cidade, ir correndo até o pequeno hospital de Santa Joaninha falar pro doutor Leandro ficar de prontidão; tirou a camisa que vestia, estancou no corte que eu fiz e, comigo no colo, saiu apressado de lá com o Branco logo atrás. Quando a Mariana me viu daquele jeito, começou a chorar a tadinha; mas seu pai a acalmava dizendo que ia ficar bem. Por sorte ou por Deus, seu Amadeu, dono da quitanda do lado da igreja, tava passando bem na hora e com o caminhão vazio. Tão logo viu o que tava acontecendo parou e seu Robson, eu no seu colo, o Branco e mais o irmão do Chumbinha, que ainda tava por lá, subiram na caçamba do caminhão. Mariana foi com seu Amadeu na boleia e tocamos que tocamos para o hospital. Chegamos rapidinho e o doutor Leandro já tava esperando a gente na porta com uma maca onde me colocaram. Alguém tinha lembrado de avisar meus pais e quando minha mãe me viu daquele jeito, quase teve um troço – ainda bem que estavam todos no hospital.
         Coisa de dois, três dias depois, já tava pronto pra outra. O doutor Leandro falara que o corte tinha sido superficial e só tinha ficado desacordado por causa da topada na cabeça. E ele tinha afirmado que, mais variado do que eu já era, não ia ficar, o que sossegou meus pais. Mas o mais legal foi o que se ocorreu depois. Ainda no hospital, o doutor Leandro disse ao seu Robson que se ele não tivesse me encontrado a tempo, talvez, minha situação ficaria sim pior. Então, seu Robson, ainda na sua lucidez, disse ao doutor que, se não fosse pelo Branco, meu fiel amigo, é que eu ia ficar ruim. Daí em diante, toda a cidade passou a tratá-lo diferente, como um verdadeiro herói. Por onde a gente passava enchiam-no de carinho e afago; sempre com um “que cachorrinho mais bonitinho” ou “come aqui um biscoitinho, Branco” e “não, meu biscoitinho é mais gostoso”; e até um “que tal se o Branco cruzasse com a minha Estrela?”. Eu até consegui namorar a Mariana. Aquele namoro bom de interior. Durou um ano, verdade, mas foi bom.

         É por isso que o Branco vive eterno nas minhas memórias e nunca canso de contar sua história. Porque não importa que a gente seja por fora: preto, branco, amarelo, homem, mulher, cachorro... Importa o que trazemos dentro da gente: alma pura e um grande coração.

Comentários

  1. Espero que tenha gostado da história. Pensei neste personagem há muito tempo - seria uma espécie de Lassie ou Benji brasileiro - mas tinha outra ideia em como trabalhar com ele. Eu o imaginava numa série em desenho animado. Quem sabe...

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