O Retorno

Se Deus criou o homem e o homem criou as máquinas, será que elas têm o tanto direito à vida quanto os humanos? É essa a pergunta que Davi, um ser (humano) de vida artificial se faz depois que fugiu do laboratório onde foi criado. Ele só quer o que todo mundo procura: um lugar no mundo e viver.



 A viagem durou uma hora, a partir da estação de trem do centro da cidade até São Marcos. Do terminal de trem até o bairro onde ela morava, era mais uma hora a pé; meia indo de ônibus ou de carro. Fui a pé. Cheguei no tempo estipulado, não queria ter pressa apesar de tudo. Estranhei um pouco o local, muito diferente da “cidade grande” onde só existiam prédios enormes, grandes avenidas e gente que não acabava mais. Aqui apenas se ouvia passarinhos piando nas árvores – havia árvores! – e algumas crianças brincando num jardim próximo. Os sobrados eram todos iguais: quintal grande na frente com um pequeno jardim, não existiam cercas ou muros, as portas duplas na entrada pareciam realmente convidar-nos a entrar, contudo, as janelas de fibra de carbono e vidro reciclado deixavam uma certa frieza na paisagem bucólica; o que os diferenciavam eram as cores, salvo um ou outro com a mesma pintura; entretanto, estes, encontravam-se em ruas diferentes e os números evitavam maiores confusões. Foi para o número vinte, da segunda rua que eu me dirigi. Curiosamente a única casa do bairro todo que era branca. Fiquei em frente ao quintal esperando que algo ou alguém me impedisse de continuar. Nada aconteceu. Então continuei. Em frente à porta, hesitei para apertar a campainha. Não sei quanto tempo fiquei ali parado pensando em outra solução, mas quando a porta abriu e Danielle apareceu na minha frente, vi que não havia mais nenhuma escolha. Ela não mudou praticamente nada: continuava esbelta, alta, mesmo de sandálias; o contraste da sua pele alva com o cabelo liso e preto só exaltava sua seriedade; os olhos claros davam um ar de... sensualidade? Contudo, o conjunto monocromático em pastel mostrava a sobriedade desta mulher de trinta e um anos com doutorado em neurociência, aplicada em genética e robótica.
         - Não quer entrar, Davi? – sua voz era calma e suave, tão suave que fazia você se sentir seguro e tranquilo. Não, não quero pensei comigo mesmo; no entanto, não tive outra escolha. Quando entrei na sala de estar, parecia estar dentro de um dos consultórios do Centro; era bem frio em todos os sentidos. As paredes, assim como as de fora, eram totalmente brancas como se fossem uma extensão de sua pele; havia pouquíssimos móveis, todos feitos de plástico sintético. Não tinha nenhum quadro na parede ou outro objeto de decoração, apenas os três sofás e uma mesa de centro no meio. Não ficaria surpreso se tudo estivesse milimetricamente disposto.
         - O chá que estou preparando está quase pronto. Por que não se senta?
         - Como sabia que eu viria, Danielle?
         - Você sempre veio a mim quando tinha algum problema. O que aconteceu não é diferente. Ou é?
         - Mas você estava me esperando? Nem apertei a campainha... Como sabia?
         - Da mesma forma que você sabia exatamente onde fica a minha casa.
         - Como?!
         - Cada um de vocês tem na memória a localização de um local específico onde, por algum tipo de caso especial, poderão encontrar seus respectivos tutores. No seu caso, eu.
         - Mas como é possível? Vocês sabiam que íamos fugir? E se sabiam, por que deixaram, foi outro teste?
         - Não, não foi um teste, Davi, foi um acidente. Vocês não deviam ter fugido. Quanto ao resto... bom, Davi, eu sei tudo sobre você.
         - Tudo o quê? – o sofá era frio e duro.
         - Tudo. O que você quer saber?
         - Quem... sou eu?
         - Não vou mentir para você, Davi: vocês são o ponto máximo da criação humana. Uma nova forma de vida. Mais que uma máquina, mais que o próprio homem, vocês são quase o ser perfeito.
         - Então, eu sou um androide não é isso! Um ser artificial!
         - Não, Davi, vocês são uma nova espécie de ser vivo, entende. Será que é necessário que um ser nasça do útero de uma mulher para ser considerado humano? Séculos atrás, crianças foram geradas em incubadoras e chamadas de “bebês de proveta”, eles foram considerados artificiais? Em outros casos, mães com problemas de gestação tiveram a concepção dos gametas masculino e feminino fora do útero e, posteriormente, introduziam o embrião. Um procedimento artificial gerando um ser natural. E hoje que tem pais que praticamente encomendam seus filhos definindo, antes de nascerem, a cor do cabelo, olhos, altura e até prevendo e tratando de possíveis doenças que possam se manifestar no futuro. Isso também poderia ser considerado artificial e, no entanto, não é. Você é tão normal quanto qualquer um.
         - Isso não faz sentido, Danielle. Meu corpo não é igual ao de um homem normal, meu cérebro parece mais um computador do que um órgão humano...
         - Davi, seu corpo não precisa ser igual ao de todo mundo, ele é diferente, melhor até do que todos nós e quanto ao seu cérebro, afinal o que é o cérebro senão outra espécie de computador que...
         - PARA, PARA, CHEGA! Pode parar aí mesmo! Eu sei que sou um androide, certo. Mais que uma máquina, sim, mas menos do que um ser humano porque o que sinto, minhas lembranças do passado, é tudo falso. Você mesmo disse que somos programados. Eu só quero saber para o que, afinal, fomos programados para fazer.
         - Tudo bem, Davi, acalme-se e continue sentado; eu lhe direi o que quer saber.
         - Não, eu não vou me sentar! Eu estou confuso, com medo, machuquei algumas pessoas e não estou conseguindo me controlar. Eu vim aqui porque não tinha mais nenhum outro lugar onde encontraria ajuda e, infelizmente, você é a única que pode me ajudar. E então, vai me ajudar?
         - É claro que vou ajudá-lo, Davi, sempre ajudei. Conte tudo o que aconteceu, você disse que machucou pessoas?
         - Sim... eu tenho momentos que simplesmente não consigo me controlar e acabo agredindo certas pessoas ou destruo o lugar em volta. Por que isso acontece?
         - Muito bem, Davi, diga-me: essas pessoas que você diz ter machucado atacaram você?
         - Por que me pergunta isso?
         - Bom, Davi, vocês foram, por falta de um termo melhor, programados com algo que chamamos de autodefesa. Vocês possuem noções básicas de luta que é ativado quando sentem que vocês mesmos ou alguém que querem proteger estão ameaçados de alguma forma. Fale, isso aconteceu? – lembrei-me dos guardas no centro comercial e do pai de Pedro.
         - Sim, aconteceu, mas por que temos isto e por que não consigo controlar?
         - Conte-me uma coisa, Davi: como andam seus sentimentos, suas emoções... tem gostado de alguém, algum tipo de afeição, amizade ou mesmo amor? – mais uma vez lembrei-me de Daniel, Pedro, Carlos e Beatriz.
         - Sim, tenho sentimentos por algumas pessoas e acho que você já sabe disso. E o que tem a ver, por que é tão importante?
         - Bom, Davi, vocês também foram programados com o que chamamos de emovirtu. É um programa experimental que simula emoções, ou seja, em determinada situação o emovirtu se ativa e “diz” a você o que ou como sentir.
         - O quê?
         - Isso mesmo, Davi. Infelizmente, o emovirtu apresentou algumas falhas e acredito que são essas falhas que o faz se descontrolar. Era por isso que vocês não podiam fugir e, por isso, vou te pedir agora: volte Davi! Volte para casa. Tenho certeza de que lá poderei ajudá-lo.
         - Voltar! Você quer que eu volte pro CTN? Aquele lugar mais parece uma prisão! Mal podíamos tomar um simples banho de Sol. Não, eu não vou voltar. Quero que me ajude aqui mesmo!
         - Davi, preste atenção, eu só posso ajudá-lo no CTN. Não tenho o equipamento necessário aqui comigo. Volte Davi, além do mais, não há mais nenhum sentido que só você fique aqui fora.
         - Como assim?!
         - Davi, só falta você. Todos os outros já retornaram. Você é o único que resta.
         - Mentira! Não faz menos de dois dias que falei com Carlos! Ele ainda está por aí e outros também.
         - Davi, Carlos foi um dos primeiros que capturamos. Não há mais ninguém, só você. Por favor, volte.
         - Mas como? Eu falei com ele! Como ele foi um dos primeiros capturados se... não, não pode ser. Eram vocês! Vocês falavam comigo se passando por Carlos. Vocês me enganaram! Você me enganou, não foi? Vamos, fale alguma coisa! – mas ela não falava nada, apenas me olhava com aqueles olhos, aqueles olhos claros de uma sensualidade estranha, uma sensualidade fria. Eram como dois cubos de gelo me fitando.
         - Por quê? Por que tudo isso? Por que afinal estamos aqui?
         - Davi, ouça-me...
         - RESPONDA! Por que vocês nos criaram?
         - Acalme-se, Davi. Muito bem, nós criamos vocês... para serem a salvaguarda da humanidade.
         - Salvaguarda?!
         - Isso Davi, veja: nos últimos tempos a humanidade passou por horríveis catástrofes: no século vinte e um, houve a Terceira Guerra Mundial e o Segundo Dilúvio; no século vinte e dois, A Grande Seca assolou metade do globo e vitimou mais gente do que qualquer guerra ou epidemia viral; e agora, temos a supergripe. O homem está se extinguindo, Davi. Por causa disso tudo as pessoas estão parando de ter filhos. Sei que as cidades estão superpopulosas, mas isso é porque há poucas ainda com estrutura de moradia e oferta de emprego. A maioria está preferindo viver nas colônias lunares ou marcianas, mesmo com toda a precariedade. Foi por isso que criamos vocês. Vocês não envelhecem e, no caso da civilização chegar a níveis muito baixos de natalidade, serão vocês que guiarão e manterão a vida dessas pessoas, para que, de geração em geração, o homem floresça novamente e torne-se autossuficiente.
         - E nós, Danielle?
         - O quê, Davi?
         - Quando o homem ficar autossuficiente não seremos mais úteis, certo? Então, o que farão conosco?
         - Ora Davi, vocês ainda terão um lugar nessa nova civilização. O conhecimento e a experiência que vocês têm e terão será tão importante quanto...
         - Não adianta!
         - Como, Davi?
         - Não adianta, eu não acredito mais em você.
         - Davi... eu não sei mais o que posso dizer...
         - Então, não diga mais nada. Durante todo o tempo no CTN você só mentiu pra mim e mente agora também. Eu não sei onde estava com a cabeça quando pensei que podia me ajudar e é óbvio que não pode e nem mesmo quer!
         - Eu quero te ajudar, Davi. Não faça isso, pode estar cometendo um erro.
         - Meu único erro foi ter confiado em você, Danielle. Não farei isso de novo.
         - Davi, não!
         - Adeus, Danielle.
         Eu devia estar muito distraído com a discussão que não percebi que havia movimento ao redor da casa. Só quando me voltei para a porta foi que vi vultos pela janela: eram três... não, quatro lá fora aproximando-se. Voltei-me outra vez para Danielle e ela estava sentada imóvel; foi quando mais três guardas do CTN adentraram a sala, vindo do interior da casa. Ao mesmo tempo ouvi a porta da sala sendo arrombada e os guardas do lado de fora invadiram o recinto. Eles estavam me esperando, ela estava me esperando, era uma armadilha e só percebi muito tarde. E antes que eu pudesse pensar em fugir ou atacá-los, fui atingido por um taser nas costas, outro no braço, mais dois no peito e foi o suficiente para que eu caísse. Enquanto me debatia no chão, Danielle se aproximou e ejetou com uma seringa laser algo que fez com que meu corpo paralisasse – “vai ficar tudo bem, Davi” – disse ela com aquela voz suave. Fui colocado em uma maca e levado para uma van. Estava voltando para o CTN. Contra a minha vontade por pessoas que confiei um dia. Voltarei à minha maternidade, meu lar da infância e adolescência, a minha escola e o meu trabalho. Retornarei ao lugar onde nasci e que, muito provavelmente, o lugar onde morrerei. Espero morrer um dia.

Comentários

  1. ENFIM, O FIM! Termino aqui minha pequena saga. Não contei o tempo que levei para realizá-la, mas creio que do primeiro rascunho no papel à última palavra digitada e publicada aqui, deve ter se passado, aproximadamente um ou um ano e meio. Ainda não sei se escreverei sobre Davi novamente, procurei me divertir escrevendo e descobrindo coisas sobre ele e eu espero que quem ler também sinta um pouco disto. Bom, por enquanto não preciso ter pressa em decidir qualquer coisa, afinal, ele não vai fugir de onde está!

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