Legado


         
Miguel era um jovem que levava a vida totalmente desregrada. Ao completar a maioridade, é visitado pelo Arcanjo Gabriel que lhe diz que sua encarnação anterior - um homem íntegro, porém, descrente - acordou com ele que, se tivesse os poderes de um anjo, faria grande diferença no mundo.
            Não encontrando outra solução a não ser retificar o acordo, Miguel é nomeado o Arcanjo na Terra e deverá expurgar o mal das almas dos homens, incluindo sua própria.
 

           O vidro da porta de um carro explodiu bem acima deles, estilhaçando-se em vários fragmentos. Um em especial, pela primeira vez, percebeu como a vida pode ser frágil e passageira. Porém, Miguel já sabia disso há muito tempo. O som do tiroteio da pequena guerra entre policiais e assaltantes lhe era bem familiar e, por isso mesmo, desagradável. Márcio, o garoto que estava com ele e que jurou proteger, estava bem assustado. Ele nunca tinha passado por nada parecido com aquilo. E Miguel tinha que se certificar que aquela seria a única vez.

         Três dias atrás, ele mal poderia imaginar o que estava por vir. Havia sido chamado pelo arcanjo Gabriel e logo estranhou o local do encontro: um hospital, mais precisamente, no teto do prédio. Ao chegar, viu o arcanjo em companhia de uma mulher que não reconheceu.

         - Miguel, chegaste a tempo, disse Gabriel.

         - Pontualidade é minha marca, brincou. – Bom, do que se trata, quem é o demônio da vez?

         - Antes, as apresentações: esta é Maria Antônia. Ela pediu a mim algo e pensei que tu poderias ajudar. 

         - Claro, o que eu puder fazer... Muito prazer dona Maria Antônia, o que a senhora quer que eu... – ao se dirigir a mulher, Miguel estendeu sua mão para cumprimentá-la e instintivamente ela respondeu ao gesto, porém, recuou rapidamente e sua mão passou como vento entre os dedos dele. Ele arregalou os olhos um tanto surpreso para Maria Antônia e depois para Gabriel que continuou impassível.

         - Podia ter me avisado! – reclamou para o arcanjo.

         - Não mudaria nada, replicou Gabriel e Miguel lhe deu um olhar de reprovação. Sua atenção, no entanto, voltou-se para a senhora que lhe fez um pedido:

         - Miguel, por favor, preciso que ajude meu filho!

         - Seu filho? Qual é o problema dele?

         - Ele está se perdendo, começou ela a explicar. – Acho que não está reagindo bem a minha morte e, em vez de buscar conforto com o restante da minha família, está cada vez mais se juntando com... marginais.

         A hesitação de Maria Antônia fez Miguel pensar se ela sabia da sua história. No entanto, essa impressão podia ser das memórias do seu passado que espocaram como flashes diante de seus olhos quando seu pai acabara de falecer e ele, assim como esse garoto, buscou alívio de maneira errônea. Gabriel então falou:

         - Miguel, ela se recusa a fazer a passagem enquanto não souber que o filho ficará bem e a salvo. Podes ajudar o jovem?

         Ele pareceu não ter ouvido. Ficou como que olhando para o nada durante alguns segundos antes de fazer uma pergunta a Maria Antônia:

         - Qual o nome dele?

         - Márcio, respondeu.

         - Tudo bem, eu vou ajudá-lo.

         - Oh, Miguel, muito obrigada, disse ela que fez menção de abraçá-lo, mas logo recuou com algumas lágrimas e um sorriso sem graça no rosto.

         - Está tudo bem, disse ele; onde posso encontrá-lo?

         - Márcio mal para em casa, mas na escola ele vai quase todo dia. Tornou-se um ponto de encontro da turma dele, disse Maria Antônia.

         - Não tem problema, eu o encontro.

         - Terás que ter brevidade, Miguel! – pronunciou o arcanjo. – Se Maria Antônia não fizer a passagem em tempo, ficará no plano terreno tornando-se um espírito errante e instrumento das tentações do mal.

         - Tava parecendo muito fácil mesmo, retrucou. – A senhora pode descansar em paz, mesmo, eu cuidarei de Márcio. Ambos se despediram e Gabriel ressaltou mais uma vez para Miguel se apressar.

         No dia seguinte, em um colégio num bairro periférico da cidade, três garotos conversavam rente ao muro do prédio, porém, apenas um chamava a atenção de Miguel. Ele estava do outro lado da rua e viu um rapaz de não mais de dezesseis anos, pele negra clara, não muito alto e um tanto franzino. Um Pálio preto se aproximou com dois sujeitos e os outros se afastaram em direção ao veículo – fica de boa aí, Marcinho – disse um deles e Miguel viu ali uma oportunidade. Ele se aproximou de Márcio, mesmo sabendo que este poderia refutá-lo.

         - Aí, Márcio!

         - Eu te conheço? – perguntou desconfiado.

         - Meu nome é Miguel, Márcio, e preciso falar contigo.

         - Falar comigo sobre o quê? De onde cê é?

         - De onde eu sou você não acreditaria... Estou atendendo um pedido.

         - Um pedido de quem?

         - De uma amiga, Márcio.

         - Que amiga, cara, nem te conheço! É melhor cair fora! – exasperou-se. Porém, Miguel continuou.

         - Márcio, não posso ir ainda. Essa amiga está preocupada com o rumo que está tomando para a sua vida. Acredite em mim, já passei por isso...

         - Passou o quê, cara! O que você sabe da minha vida?

         - Sei muita coisa, Márcio. Passei exatamente o que você está passando agora. Se afastar da família e tomar o caminho errado pode não ter volta, maninho.

         Márcio ficou por alguns segundos encarando Miguel enquanto suas palavras processavam em sua mente. No entanto, ele falara alto o que chamou a atenção dos outros dois rapazes. Se não fosse por isto, talvez Miguel pudesse ter se aproximado mais de Márcio, contudo:

         - Marcinho, que quê foi? – perguntou Nelsinho, um deles.

         - Esse cara me enchendo o saco! – reclamou ele.

         - Que cara?

         - Esse que tá... – Márcio olhou para o lado, mas não viu Miguel ou qualquer outra pessoa. Contudo, ele estava ali, bem ao seu lado, invisível para olhos terrenos como os deles.

         - Qualé, Marcinho, vai querê arregá agora que já tá tudo no esquema? – perguntou Doni, que parecia ser o mais velho do trio.

         - Não, Doni, eu disse que vou fazer e vou mesmo... – respondeu Márcio com certa hesitação na voz.

         - Acho bom, Marcinho, que pular fora agora fica meio complicado... tu tá ligado né, disse Doni com um certo tom ameaçador.

         - Não, pode deixar, eu tô dentro, disse Márcio tentando convencer não só os outros, mas ele mesmo.

         - Certo garoto. Chega aí, vem vê os caras... – Márcio então foi com eles até o carro. Miguel, ainda invisível, ficou com vontade de tirá-lo dali naquela hora. Porém, pensou que se Márcio tivesse a mesma experiência por que ele teve, seria mais fácil convencê-lo a largar esta vida. Só esperava poder protegê-lo como prometeu.

*

        

No domingo à noite, Miguel fora até o local onde o bando realizaria o assalto: era um pequeno mercado num bairro de relativa classe média. Quando chegou, Miguel viu, do outro lado da rua, o mesmo Pálio preto com os dois que imaginou serem os líderes da ação. Não viu Márcio e os outros e ficou preocupado; resolveu entrar no mercado de forma invisível para não chamar atenção. Viu um deles num dos corredores dando sinal para alguém; quando Miguel se aproximou, Márcio respondia com um positivo. Miguel então surgiu ao seu lado.

         - Márcio, e aí!

         - Que... você de novo? – espantou-se Márcio. – Sai do meu pé, cara! Não acredito; por que cê tá me seguindo?

         - Já disse, Márcio, prometi a uma amiga que iria ajudá-lo e é o que estou fazendo cê querendo ou não.

         - E quem é a porra da sua amiga?!

         - Sua mãe, Márcio! – ele paralisou. Não esperava ouvir aquilo, mas era o impacto que Miguel queria provocar.

         - Cê... cê... tá mentindo... cê não conhece minha mãe... – duvidou Márcio e Miguel percebeu nos seus olhos surgirem raiva e tristeza em forma de lágrimas.

         - Eu conheci dona Maria Antônia alguns dias atrás; ela está preocupada com você, com o rumo que está tomando, se afastando da família. Há quanto tempo você não vai ver sua mãe?

         - Eu... eu... não sei, faz... por que está fazendo isso? Vai embora, cara!

         - Estou aqui para ajudá-lo, Márcio. Se fizessem isso comigo também, talvez seguisse outro caminho. Quando meu pai estava para falecer, eu não quis ouvir ninguém, minha mãe, meus amigos, não entendia ou queria entender o porquê daquilo estar acontecendo. Então fugi, de tudo e de todos, e fui parar no lugar errado que só percebi quando era tarde demais! – Márcio abaixou a cabeça e a culpa e o remorso vieram à tona, mas ele continuava a ouvir Miguel. – Mas pra você ainda não é tarde, Márcio. Volte para sua família, sua mãe ainda quer lhe ver nem que seja para se despedir.

Márcio enxugou as lágrimas que molhavam seu rosto e, balançando a cabeça, resolveu se pronunciar:

         - É tarde demais pra mim, esses caras vão me matar se eu sair fora, dessa vez não tem jeito...

         - Sempre tem um jeito, rebateu Miguel; e estou aqui para lhe proteger! Ninguém irá feri-lo!

         - Marcinho, que cê tá fazendo? Interrompeu Doni com nervosismo. – É agora, é agora! – e Márcio foi atrás dele, mas Miguel ainda o chamou:

         - Márcio, não! Já disse: vou protegê-lo, não faça isso!

         - Você não pode me proteger... A única pessoa que poderia está morrendo, e ele saiu apressadamente deixando Miguel com um frio na espinha. Contudo, foi atrás dele... Mas tudo aconteceu muito rápido.

         Uma arma foi apontada para um dos caixas e outra em direção a alguns clientes que estavam próximos com ordens para ninguém se mexer. Porém, alguém se mexeu. Uma mulher assustada gritou e saiu correndo em direção à saída. Dois estopins secos foram o suficiente. O primeiro ultrapassou a porta e atingiu o para-brisa de um carro fazendo soar um estrondoso alarme; o segundo acertou o ombro da moça que gritava por socorro fazendo-a cair pelo impacto. Foi nesse momento que uma viatura da polícia, que passava em frente, adentrou o estacionamento e, ao mesmo tempo, um Pálio preto cantava os pneus em disparada. Miguel só teve tempo de pegar Márcio pelo braço e puxá-lo.

         - Você vem comigo agora! – e, enquanto saíam, Nelsinho começou a disparar contra os dois policiais, e estes revidaram. Clientes e funcionários começaram a correr e a se proteger, no entanto, no meio de toda aquela confusão, Doni pode ver Márcio fugindo com Miguel e enervou-se.

         - Márcio, seu filho da puta! – gritou e disparou sua arma em direção a Márcio. Apesar da distância, a bala o teria atingido se Miguel não ficasse entre ele e o projétil, que varou seu peito, fazendo-o cambalear pelo estacionamento.

         - Não, caralho, o que cê fez? – desesperou-se Márcio.

         - Eu... vou ficar bem, disse Miguel meio tonto; rápido, atrás daquele carro... – os dois então foram se proteger no exato momento em que chegavam mais duas viaturas.

         - Márcio, gritava Doni, não foge não seu... – seu intento foi interrompido quando foi alvejado por duas balas proferidas de um dos P.Ms. Nelsinho viu Doni caído e começou a atirar a esmo em direção aos policiais que revidavam cada tiro e, um destes, encontrou a testa de Nelsinho; pessoas foram feridas, alguns carros tiveram o vidro estilhaçado e, perto de um destes, um garoto começou a chorar e a temer pela própria vida e a do amigo que acabara de fazer.

         De repente um silêncio. Estranhamente tão ensurdecedor quanto a batalha que acabara de ocorrer.

         Ouviram-se então gemidos, pedidos de socorro e uma ou outra ordem de policiais. Quando Márcio pensou em ver o que estava acontecendo, um P.M. se aproximou:

         - Vocês estão bem? – perguntou e Márcio congelou. Sua vida estava selada, pensou. Mesmo sendo menor de idade, estaria marcado para sempre; fichado como assaltante, seus amigos, familiares, ninguém o veria de outra forma a não ser como um criminoso que se tornou. Contudo:

         - Estamos bem, seu guarda, respondeu Miguel para o espanto de Márcio. – Meu irmãozinho e eu conseguimos nos proteger aqui, disse dando uma olhada de canto para o garoto.

         Novamente, o barulho de sirenes invadiu o local, porém, eram ambulâncias.

         - Se não estão feridos, fiquem aqui. Falarei com vocês daqui a pouco, disse o P.M. antes de se retirar.

         - Tudo bem, falou Miguel apertando o ombro direito de Márcio que ainda fazia esforço para entender o que acontecia.

         - Cara, como é que você... Quem cê é afinal? – perguntou.

         - Sou seu anjo da guarda, quem mais! – respondeu Miguel com um sorriso no rosto contrastando com o súbito acesso de choro de Márcio. 

         - Eu pensei que... você, eu... pensei que já era, que... – Miguel o interrompeu.

         - Ainda há tempo, Márcio.

         - Minha mãe... ela...

         - Está te esperando.

         Os dois se abraçaram e saíram daquele cenário de pós-guerra em meio às luzes vermelhas das viaturas como se estivessem deixando um pequeno inferno.

         Na noite seguinte, Miguel encontrou-se novamente com Gabriel e Maria Antônia para enfim se despedirem.

         - Miguel, não tenho palavras para lhe agradecer, disse ela emocionada.

         - Não precisa, disse Miguel; Márcio é um bom garoto, só precisava de um empurrãozinho na direção certa!

         - Nem me diga! Márcio é meu único filho, não sei o que seria dele se não pudesse falar com ele uma última vez...

         - É o que deixamos pro mundo...

         - Como?

         - Meu pai me falou algo assim antes de... antes de ir embora: nossos filhos são o legado que deixamos para o mundo.

         - Era um homem muito sábio seu pai.

         - Era sim.

         Então, Gabriel, que estava em silêncio, lhes disse:

         - É chegada a hora, Maria Antônia.

         - Oh... Miguel eu... queria lhe dar um abraço...

         - Eu também, mas... – Miguel olhou para Gabriel que consentiu com a cabeça. Os dois envolveram seus braços um no corpo do outro e foi como se velhos conhecidos se abraçassem. Logo depois que se despediram, Miguel ficou com uma estranha sensação, um dejá vu, como se já tivesse abraçado Maria Antônia – será que... não, seria coincidência demais – pensou e foi-se. Gabriel e Maria Antônia ainda se detiveram olhando Miguel se afastar quando esta perguntou ao arcanjo:

         - Gabriel, ele não se lembra de nada da sua outra vida?

         - Apenas o que lhe é permitido e necessário lembrar, respondeu.

         - Mas, ele não deveria?

         - Não, Maria Antônia.

         - Mas, por quê? Sou sua filha, quer dizer, de sua vida anterior, ele não tem o direito de saber?

         - Não, estes são os desígnios do Senhor.

         - Eu não entendo...

         - Cada um, Maria Antônia, deve trilhar seu próprio destino, cumprir sua própria missão, por mais tortuoso que seja o caminho. 

Comentários

  1. Demorou mais do que acharia, mas enfim, o fim. Espero realmente que, quem ler, se divirta como eu me divirto escrevendo. Não tenho e nunca terei intenção de ensinar grandes lições, mas, apenas, escrever uma boa história. No mais, até a próxima!

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