Destino

Se Deus criou o homem e o homem criou as máquinas, será que elas têm tanto direito à vida quanto os humanos? É essa a pergunta que Davi, um ser (humano) de vida artificial se faz depois que fugiu do laboratório onde foi criado. Ele só quer o que todo mundo procura: um lugar no mundo e viver. 


  Desde que fugi do CTN “sem eira nem beira”, como as pessoas dizem, vinha me perguntando o que faria da minha vida. Todos pareciam saber qual seria o seu futuro, sua missão no mundo. Será mesmo necessário ter uma? Viver, por si só, já não era o suficiente? Parecia que, para a maioria das pessoas, não. Então, tive que descobrir qual era a minha missão. Não nasci como as outras pessoas. Nunca passei pela infância e adolescência, apesar das minhas recordações dizerem o contrário. Dizem alguns que seu futuro já está escrito. Será que deveria acreditar nisso? Se não sou humano, será que meu futuro estaria escrito em algum lugar? Bom, esperava encontrar essas e outras respostas na Casa da Madame Pandora. Encontrei este lugar por acaso e nas últimas semanas passava em frente, quase todo dia, criando coragem para descobrir algo crucial para mim. “Madame Pandora lê seu futuro por apenas um crédito”, dizia a placa na porta ao lado de uma loja de roupas e utensílios exóticos. Estava aguardando na sala de espera por, pelo menos, uns vinte minutos. No sofá, ao lado do meu, mais duas pessoas – uma mulher aparentando ser de alta classe e um homem com boné e estranhamente com óculos escuros – esperavam, assim como eu, que Madame Pandora diga o que o futuro lhes reserva. A porta do consultório se abriu e de lá saiu outra senhora, com o rosto vermelho de choro, enxugando as lágrimas com um lenço e agradecendo a Madame por algo que ela lhe disse. Será que foi algo bom ou ruim? – “o próximo” – ouvi vindo de dentro do consultório. Era eu. Deixei meus pensamentos para depois. Depois que eu soubesse, se tinha ou não e qual seria o meu futuro.
          - Madame Pandora lhe dá boas vindas ao seu humilde estabelecimento. Sente-se.
          - Obrigado.
          - Então, deseja saber o quê exatamente?
          - Bem... eu quero saber qual é o meu destino.
          - Seu destino. Por quê? Tem medo que algo de mal lhe aconteça?
          - Acho que sim.
          - Não quer ser mais específico. Não quer saber o que vai acontecer amanhã ou depois. Saber se vai encontrar um grande amor ou ficar rico!
          - Não, eu... apenas quero saber se eu tenho um futuro.
          - Como se chama, meu filho?
          - Davi.
          - Davi do quê?
          - Apenas Davi.
          - Davi, me dê sua mão – ela a segurou com as suas duas, fechou os olhos e começou a sussurrar palavras sem sentido. Estranhamente gemeu e então...
          - Davi, você terá uma grande missão pela frente!
          - Qual?! – quase desesperado.
          - Há um homem em seu caminho, eu o vejo: ele é alto, pele clara e usa um casaco roxo.
          - Mas, quem é ele? – desesperado de novo.
          - Ele mudará a sua vida. Ele perguntará: “de onde você veio?” e você responderá: “eu venho dos campos e trago o novo alvorecer da humanidade!”.
          Fiquei atônito durante alguns segundos. O que ela disse pareceu fazer sentido. O Centro ficava afastado das cidades, ou seja, no interior e, de certa forma, eu sou um alvorecer, uma novidade no mundo. Voltei para Madame Pandora e ela pareceu estar em um estado de transe.
          - Eu vejo... eu vejo...você será...será... – ela hesitou e depois: – Não consigo ver mais nada...
          - Mais nada! Apenas isto: encontrarei um homem e ele mudará a minha vida. Isso é bom ou ruim?
          - Madame Pandora apenas diz o que vê e só o que vê – pareceu-me um pouco evasiva, mas agradeci assim mesmo. Paguei a quantia combinada e me despedi.
          - Madame Pandora deseja que você encontre aquilo que procura – agradeci de novo e ao sair, distraído, esbarrei no homem com óculos escuros. Pedi desculpas e sai do consultório com mais perguntas que respostas.
          No dia seguinte, ainda pensando sobre o que Madame Pandora disse, me perguntava se o meu destino se resumia a isso ou era apenas o começo da minha verdadeira missão. De repente parei e percebi que estava indo na direção do consultório da vidente. Devia ser apenas distração. Mudei e fui para um dos postos de uninet da cidade. Ainda precisava saber como e onde estavam meus irmãos. Atravessei a avenida correndo e sem querer trombei com um homem. Um homem alto, de pele muito clara e vestindo um casaco... um casaco roxo! Fiquei paralisado olhando para ele e ele para mim. Então, ele se aproximou um pouco mais e perguntou:
          - Mas afinal de onde você veio? – foi incrível, exatamente como Madame Pandora previu. Parecia que minha missão enfim iria começar.
          - Eu venho dos campos e trago o novo alvorecer da humanidade! – respondi de forma mais clara possível e fiquei esperando o que ele me diria em seguida. Então, quando achei que ele ia falar, alguém atrás de mim me agarrou pelos dois braços, o próprio mensageiro da minha missão tapou minha boca com a mão e os dois me levaram para dentro de um veículo e me jogaram na parte de trás. Na frente, tinha outro me esperando e só mais tarde descobriria que não só ele como todos realmente me aguardavam.
          - ONDE TÁ? – gritou o sujeito da frente – ONDE TÁ?! ME ENTREGA AGORA!!
          - O que, eu não sei o que você quer... – assustado, fui interrompido.
          - O pacote! Não enrola, me entrega o pacote!
          - Mas, que pacote? – além de assustado, fiquei confuso. – Eu não sei que pacote você... – e fui interrompido de novo; desta vez, por uma arma apontada para a minha cabeça.
          - Eu só vou perguntar mais uma vez, onde tá o pacote?
          Ele estava irado, nervoso. Fiquei paralisado diante dele e daquela arma. O que estava ao meu lado, o alto de casaco roxo, resolveu se pronunciar:
          - Calma, Liceu, calma. Ele é apenas um fio.
          Um fio. Ele disse que eu era apenas um fio. Ainda ouviria essa palavra de novo e aí entenderia o seu significado para essa gente. Eles me revistaram e acharam o que procuravam.
          - Tá aqui, tá tudo aqui, disse o de casaco roxo. Não era exatamente um pacote e sim três tubos de ensaio amarrados com um elástico. Havia um líquido azul dentro deles e eu só podia imaginar o que era e como foram parar no bolso da minha jaqueta.
          - Bom, agora é arranja um jeito de apaga o infeliz – disse Liceu.
          - Peraí, Liceu, isso não tava combinado.
          - Ele sabe da situação, viu nosso rosto!
          - Ele não vai falar nada, disse o sujeito no banco da frente; vai fingir que nunca aconteceu, né não Davi?
          Ele sabia o meu nome! É claro! O homem na Madame Pandora de boné e óculos escuros! Ele esbarrou em mim. Foi assim que o “pacote” veio parar no meu bolso.
          - É, eu... nunca vi vocês na minha vida – era a primeira de muitas mentiras que teria que falar para sobreviver neste mundo.
          - Tá, tá, só quero ver.
A porta do veículo foi aberta e fui simplesmente jogado para fora. O carro saiu em disparada sem nenhum tipo de despedida. Fui usado e fiquei com a impressão que não seria a última vez. Comecei a ficar nervoso e só consegui ver o consultório da Madame Pandora na minha frente. Sem pensar duas vezes segui para lá. No caminho minhas lembranças tomaram vida e invadiram minha mente. Estava no Centro de novo numa das aulas com um dos tutores; e em determinado momento ele falou a nós: “vocês são muito especiais, lembrem-se sempre disto. Há uma grande missão esperando cada um de vocês”. Como não me lembrei disto antes. Eles nos diziam que teríamos um papel importante a cumprir no futuro. Será que é disso que estavam falando? Seríamos usados pelo Centro como eu fui hoje para algum fim obscuro. Deixei minhas reflexões de lado. Quando cheguei ao consultório, subi direto as escadas. Na sala de espera havia duas senhoras esperando...
         – VOCÊS ESTÃO SENDO ENGANADAS, ELA MENTE! – gritei na esperança que percebessem o erro que estavam cometendo. Não esperei ser anunciado. Arrombei a porta com o pé para que ela soubesse o quanto estava furioso.
– SAIA!! – gritei para o senhor que estava sendo atendido pela Madame Pandora e imediatamente me voltei a ela.
          - VOCÊ ME ENGANOU, ME ENGANOU!!
          - Mas o que Madame Pandora pode fazer ... – não a deixei terminar; empurrei a mesa com tudo para a parede e a agarrei pelos seus colares no pescoço.
          - Por que você me enganou? Que mal lhe fiz?
          - Eu não tive escolha, eles me obrigaram.
 - Mentira! Eu fui sincero com você, só pedi uma coisa e você me usou. O quanto ganhou com isso?
          - Olha, eu sou tão vítima quanto você. Eu tenho um filho. A única maneira de me deixarem trabalhar é fazendo o que eles mandam. Acredite em mim, por favor!
          - Por que devo acreditar?  Por que me escolheu? Será que pareço tão ingênuo?
          - Olha, eu não sou uma vigarista completa, tá. Eu realmente vejo coisas. Não claramente, mas vejo: flashes, lampejos de imagens, alguma coisa. Mas com você não vi nada, absolutamente nada. Então como precisavam de alguém aproveitei a oportunidade. Mas não foi nada pessoal, acredite não me machuque, por favor...
          Ela estava em prantos e eu ainda cego de raiva deixei meu punho em riste na sua direção. Então, algo em mim despertou. Parei um instante e desisti da insanidade que iria cometer. Larguei-a de qualquer jeito e sai sem olhar para trás.
         – Obrigada, muito obrigada... – a ouvi falando, mas continuei. Na rua, não consegui deixar de pensar no que ela me disse. Ela não viu nada do meu futuro. Sei que não deveria acreditar nisso, contudo, não nasci como os humanos, fui “fabricado”. Sendo assim, parecia que meu destino seria delegado por pessoas cujos poderes vão além dos meus. NÃO! Recusei-me a aceitar isso! Se não tenho um futuro definido, se ele não está escrito, então eu mesmo o escreverei.

Comentários

  1. ESTE EU ESCREVI DE BATE-PROTO! Estava com dificuldade para escrevê-lo. Tinha a ideia, mas não conseguia construir um enredo ou um roteiro. Graças a um livro e de bater cabeça, consegui escrever a história. Acho que se aproximou bastante do conceito original.

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