O Espelho
Era a última semana de férias de Marcelo. E ele não conseguiu viajar com os amigos. Tentou economizar desde o começo do ano: um trabalho temporário em uma loja de roupas num shopping, em Janeiro; em Fevereiro, fez um bico de repositor num mercado perto de sua casa; em Abril, ajudou a tia a vender ovos de Páscoa; e de Maio a Junho conseguiu, com uma dor no coração, vender parte da sua coleção de gibis. Em vão. Uma ou outra saída para a balada e, claro, uma pequena renovação no seu guarda-roupa não lhe deixou o suficiente para a viagem à Ubatuba. “Que azar”, disse Serginho, seu melhor amigo; “a Marcinha vai”, completou.
Entretanto, sua infelicidade de ver sua
pretendente viajando sem ele não foi maior do que ver seus pais e seu irmão caçula
indo passar a semana fora. Iam todos à Jaú visitar a avó. Aliás, o convite veio
de modo bem inusitado: na semana retrasada chegou ao apartamento da família um
pacote grande. Ao abrir, a mãe de Marcelo levou um susto provocado pelo seu
próprio reflexo na superfície frágil do presente: um espelho de aproximadamente
um e setenta de altura, ornado todo em madeira com formas curvilíneas nas
bordas. Em seu contorno havia letras estranhas talhadas que a mãe de Marcelo
não conseguiu identificar de onde eram ou o que estava escrito. E, apesar de
aparentemente antigo, estava bem conservado. Junto veio um cartão no qual a avó
explicava a filha que o espelho era um presente atrasado de aniversário e que
pertenceu a sua mãe junto ao convite para passarem uma semana no pequeno sítio
da família. Iriam todos. Marcelo não quis ir por pura birra. Queria mesmo
viajar com os amigos para a praia acompanhando sua postulante a namorada.
Decidiu ficar, já que, as aulas reiniciariam semana que vem.
Estavam todos prontos. As malas dentro
do porta-malas; Júnior no banco de trás com sua inseparável bola de futebol; e
o pai de Marcelo já impaciente esperando atrás do volante. Era sempre assim, a
mãe de Marcelo cercava-se de todo e qualquer cuidado que conhecia; e, se
descobria um novo, adotava também. Além dos tradicionais como: não esquecer as
janelas abertas ao sair, fechar sempre o bucal do gás, alimentar os peixes, ela
lembrou-lhe de cobrir os espelhos quando chover. Era supersticiosa e acreditava
que os espelhos descobertos atrairiam os raios o que para ela era sinal de
má-sorte, ainda mais agora com o novo espelho que estava na família sei lá
quanto tempo.
Depois de todas essas recomendações e
de um “amo muito você”, lá foram eles rumo ao interior. E Marcelo pode então
gritar:
- Enfim só! - ele ficaria sozinho, na
pior das hipóteses, até domingo. Não sabia se assistia a tevê, jogava
videogame, ligava o som ou conectava-se a internet. Resolveu fazer um pouco de
cada e deixar os estudos para depois.
Passava das duas da tarde. Marcelo
estava no quarto, tentando encontrar algum outro amigo que tinha ficado em casa
também como ele, quando ouviu um estrondo vindo de fora. Olhou pela janela e
viu que o lindo dia de sol que fizera estava virando noite no meio da tarde
prenunciando a grande tempestade por vir.
Marcelo lembrou-se de um dos conselhos
de sua mãe: “sempre desligue todos os aparelhos em dia de chuva”. Mas Marcelo
não deu atenção - “o que os olhos não veem...”, pensou. Contudo, houve mais um
estrondo, dessa vez mais forte e mais perto do seu prédio, deixou-o no escuro.
Marcelo se desesperou e correu o apartamento inteiro tirando todos os aparelhos
da tomada; foi quando começou a cair o pé d’água e era o pé d’água: cada pingo de chuva parecia um balde de água jogado do
alto, os ventos eram como pequenos tornados e, quando tudo isso começou a
invadir o apartamento, Marcelo se deu conta de que esquecera de fechar as
janelas. Fechou então a da área de serviço já que estava por lá; correu até a
sala e fechou a porta de vidro que dá para o terraço; fechou a do quarto do
irmão e depois a do seu próprio; e quando já estava na porta do quarto dos seus
pais, um clarão seguido de um som ensurdecedor, jogou-o de encontro à parede.
Mesmo com o ouvido zunindo, entrou no quarto e conseguiu fechar a janela;
porém, o chão e parte da cama estavam molhados. Saiu correndo e não notou a
pequena rachadura que havia se formado no espelho que sua mãe recebera de
presente da avó; era uma rachadura estranha, pequena no começo e aos poucos foi
crescendo diagonalmente pela sua superfície como uma planta. Então, quando
chegou a outra ponta, assim como surgiu, desapareceu. Foi quando Marcelo voltou
ao quarto com um pano e um rodo sem sequer imaginar o que havia acontecido.
Enquanto ele secava o chão do quarto
dos pais com todo o cuidado para evitar uma possível bronca, começou a ouvir um
psiu bem baixinho, mas que foi aumentando até que percebeu. Levantou a cabeça
para ver de onde vinha o tal psiu; achou que vinha de fora, já estava em
direção à janela, quando ouviu nas suas costas: – Aqui, Marcelo!
Ele
se virou e o que viu era tão absurdo que seu cérebro demorou para compreender o
que acontecia diante de seus olhos: seu próprio reflexo, naquele espelho estranho
e antigo, falava com ele.
- Não se assuste Marcelo, eu posso
explicar...
Mas Marcelo não ouviu. Ele estava
tentando raciocinar o que acontecia. Agiu no automático: pegou o lençol da cama
dos seus pais e rapidamente cobriu o espelho; correu até o seu quarto, trancou
a porta e sentou-se no chão mesmo. Ofegante não conseguia se lembrar se antes
sentira tanto medo como naquele momento; e ficou lá até o começo da noite
quando a tempestade enfim cessou.
*
Amanheceu. Marcelo só percebeu que era
dia seguinte quando olhou pelo calendário do celular.
- Foi um sonho estranho, só isso! –
repetiu para si mesmo enquanto ia para o banheiro. Às nove, enquanto tomava
café, sua mãe ligou para saber dele e se estava seguindo as recomendações que
deixou. Ele disse que sim, mas tremeu um pouco a voz quando falou. Sua mãe
pareceu não perceber e se despediu dizendo que voltaria logo.
Marcelo, então, resolveu dar um jeito
no apartamento antes de almoçar e ir tomar banho. Deu uma arrumada meio que por
cima, mas quando se aproximou do quarto dos pais, hesitou ao abrir a porta.
- Qualé, Marcelo! Vai dar uma de bundão
agora! – disse pra si mesmo antes de entrar e ver que o quarto estava do mesmo
jeito que deixara ontem – Será que foi sonho mesmo, refletiu. Ao ver o espelho
coberto com o lençol, parou por um momento. Como não ouviu ou sentiu nada,
tirou o lençol e então:
- Até que enfim, Marcelo! Onde cê tava
cara?
Era como um irmão gêmeo. Esse outro
Marcelo falava e movia-se totalmente independente do nosso Marcelo. Não era um
mero reflexo, era realmente um ser humano. E o nosso Marcelo ficou ali na
frente do espelho como uma estátua.
- E aí, Marcelo, vai ficar parado aí!
Fala alguma coisa!
- Eu devo tá louco, disse o nosso
Marcelo.
- Não cara, cê não tá louco! Olha só eu
sei explicar tudo isso – enquanto o outro Marcelo falava, o nosso sentava
incrédulo na cama dos pais. – Olha só, você, nós, curtimos quadrinhos certo? –
o outro Marcelo esperou algum sinal de afirmação e, como não teve, continuou. –
Certo. Nós já lemos diversas histórias em que os personagens, por um motivo
qualquer, se encontram com personagens de outras realidades ou dimensões,
certo? – um brilho acendeu-se nos olhos do nosso Marcelo.
- Peraí, cê tá dizendo que você sou eu
de uma terra paralela?
- É isso, cara! Agora você entendeu.
Não precisava se assustar daquele jeito. Eu sou você, mas ao mesmo tempo não
sou.
- Então, esse espelho é o que... tipo
um portal para realidades alternativas? – quis saber o nosso Marcelo.
- É... acho que se pode dizer que é isso mesmo,
respondeu o outro Marcelo.
- Mas como é que cê sabe disso?!
- O meu avô me contou.
- Mas o meu avô já morreu!
- Tá vendo! O seu avô morreu; o meu, da
minha realidade, não. Ele disse uma vez que, se um raio atingisse o espelho,
ele abriria uma passagem para um lugar parecido com o nosso, mas que não era
exatamente como o nosso.
- Que loco, cara! Qué dizê que cê pode
entrar no meu mundo e eu no seu, disse o nosso Marcelo com um semblante todo
maravilhado ao contrário da feição assustada de agora há pouco.
- Parece que sim, mas tem algumas
regras – falou o outro Marcelo com uma expressão mais séria. – O avô me falou
que a passagem de um mundo para outro só é possível quando as duas pessoas
passam ao mesmo tempo...
- Quer dizer que...
- É. Pra eu ir aí, você tem que vir pra
cá e vice e versa. E aí topa!
O nosso Marcelo parou para pensar: “será
que seria uma boa?”. Ir para um lugar
desconhecido, mesmo que remotamente parecido com o dele, pode ter riscos – é o
que sua mãe sempre dizia. Todavia, Marcelo, o nosso, foi movido pela
curiosidade.
- Tudo bem, vamô lá!
- Aí sim, Marcelo! Mas é aquilo: fora
uma ou duas pessoas que possa estar aqui e não aí, de resto é tudo igual.
- Beleza! Como é que a gente faz?
- Tem que ser ao mesmo tempo, então...
Os dois se aproximaram do espelho,
esticaram o braço como perfeitos reflexos um do outro e começaram a transpassar
a superfície espelhada. A sensação foi a mesma de colocar a mão dentro d’água,
o braço, a perna e, quando passaram por inteiro, a impressão foi com se não
tivessem saído do lugar.
- E aí, tudo bem? – perguntou o outro
Marcelo.
- Ué, mas eu tô no mesmo lugar! –
estranhou o nosso.
- É só impressão. Faz o seguinte: dá
uma volta por aí e eu faço o mesmo, aí a gente vê se tem muita diferença de um
mundo pra outro.
- Belê!
Então, o nosso Marcelo saiu para se
aventurar nesse mundo não tão diferente assim. Seguiu para o shopping, um dos
seus locais de devoção, para ver o que tinha de diferente do seu,
principalmente, as garotas. Chegando, notou intenso movimento, mas nada fora do
normal, pensou. Porém, acabou esbarrando em alguém que estava saindo...
- Olha por onde anda, idiota! – gritou
o sujeito para o nosso Marcelo e este apenas se desculpou.
Andando pelos corredores, passou em
frente a uma loja de eletrônicos com várias TVs na vitrine, mas não foram os
aparelhos que lhe chamaram a atenção e sim os programas em exibição: numa das
telas havia uma reportagem sobre uma batida de carros que, apesar de não ter
acarretado grandes danos nos veículos, um dos motoristas atirou com uma arma no
outro. Marcelo arregalou os olhos estupefato. Em outra tela, foi um assalto
numa padaria que resultou também em morte e ele espantou-se quando disseram que
os assaltantes eram menores de idade. “Assaltos, mortes, o que quê acontece por
aqui”, pensou Marcelo quando novas notícias apareceram nas TVs: no Oriente
Médio, os atendados entre dois países resultaram em mais mortes; na Ásia, a polícia
de um país agiu violentamente contra a população que protestava contra o regime
imposto; na África, um país em guerra civil havia feito várias vítimas...
-
Que isso cara, que mundo de doido é esse: assaltos, guerras; mas o que é tudo
isso, disse Marcelo assustado com tudo o que viu e só conseguiu pensar em
voltar para casa. A sua casa. No seu mundo.
Enfim, chegou ao apartamento e, sem
demora, foi direto ao quarto dos pais... do outro Marcelo:
- Marcelo, Marcelo! – gritou o nosso.
- Calma, cara, tô aqui. E aí, como é
que foi? – perguntou o outro.
- Meu, o pessoal daqui é doido; parece
que você não pode fazer nada e ninguém atura ninguém! Como é que você aguenta!?
- Aí é que tá: eu não tava aguentando mais!
- Como assim...
- Cê mesmo viu. Quando o seu avô falava
desse outro mundo, vi que era mais relax, mais... sei lá, diferente. Eu não via
a hora de conhecer e pra minha sorte você, exatamente você acha o espelho e
abre a passagem.
- Mas, peraí... eu abri sem querer... E
como assim meu avô? Não foi seu avô que falou da passagem?
- Também. Acontece que os dois trocavam
de lugar vez ou outra que nem a gente fez, mas aí o meu avô morreu aqui no seu
mundo numa das trocas e o seu ficou aí.
O nosso Marcelo sentiu a espinha gelar.
- Marcelo, eu quero voltar agora! – ele
bateu no espelho com tanta raiva que quase o quebrou. O outro Marcelo ficou em
silêncio. – É sério cara, quero voltar!
- Você sabe como funciona né, Marcelo:
tem que ser os dois ao mesmo tempo.
Então, por alguma razão, o nosso
Marcelo baixou os olhos e viu um martelo na mão direita do outro. O nosso
praticamente suplicou:
- Qualé, cara, cê não vai fazer isso
vai? Aqui não é o meu lugar pô! Olha, a gente pode trocar vez ou outra como
nossos avôs faziam... que cê acha?
O outro Marcelo aproximou-se do espelho
com uma expressão comovida, então seu braço descreveu um arco e, quando o
martelo chocou-se com o espelho, ambos os quartos foram invadidos por um clarão
seguido de um enorme estrondo; e os dois Marcelos foram jogados no chão. O
nosso, ainda aturdido pelo estranho fenômeno, tentava recolher os cacos do
espelho no chão; porém, estranhamente, os restos viraram pó. Já o outro, limpava
o chão tranquilamente imaginando alguma boa história para contar a mãe do nosso
Marcelo – agora sua – sobre o espelho quebrado.
Eu tive a ideia desta história há muito, muito tempo atrás, mas só recentemente, quando precisei inscrever alguns contos para um concurso literário é que consegui dar forma e conteúdo para a pequena aventura de Marcelo. Gostei muito do resultado final.
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