Inocente

Se Deus criou o homem e o homem criou as máquinas, será que elas têm tanto direito à vida quanto os humanos? É essa a pergunta que Davi, um ser (humano) de vida artificial, se faz depois que fugiu do laboratório onde foi criado. Ele só quer o que todo mundo procura: um lugar no mundo e viver.


 /C-A-R-L-O-S H-Á Q-U-A-N-T-O T-E-M-P-O? O-N-D-E V-O-C-Ê E-S-T-Á?/
         /E-S-T-O-U E-S-C-O-N-D-I-D-O E-M U-M A-L-B-E-R-G-U-E/E V-O-C-Ê O-N-D-E E-S-T-Á-?/
         /N-O M-O-M-E-N-T-O N-U-M-A L-A-N T-E-C-L-A-N-D-O C-O-M V-O-C-Ê/O Q-U-E T-E-M F-E-I-T-O/T-E-V-E C-O-N-T-A-T-O C-O-M M-A-I-S A-L-G-U-É-M?/
         /N-Ã-O I-N-F-E-L-I-Z-M-E-N-T-E/E-S-T-O-U P-R-E-O-C-U-P-A-D-O/V-A-M-O-S N-O-S E-N-C-O-N-T-R-A-R E-M A-L-G-U-M L-U-G-A R/T-A-L-V-E-Z J-U-N-T-O-S P-O-S-S-A-M-O-S E-N-C-O-N-T-R-A-R O-S O-U-T-R-O-S/
         /C-O-N-C-O-R-D-O/M-E-U T-E-M-P-O A-Q-U-I E-S-T-Á A-C-A-B-A-N-D-O/V-O-U P-R-E-C-I-S-A-R D-E M-A-I-S C-R-É-D-I-T-O-S/T-E-N-T-E C-O-N-E-C-T-A-R-S-E N-A U-N-I-N-E-T A-M-A-N-H-Ã N-E-S-S-A M-E-S-M-A H-O-R-A/C-O-B-I-N-A-R-E-M-O-S T-U-D-O/
         /O-K/N-O-S V-E-M-O-S A-M-A-N-H-Ã/
         Senti-me mais aliviado depois que falei com alguém. Ainda mais Carlos, meu colega de quarto. Saindo da lan-house, pensava em alguma maneira de conseguir mais créditos para voltar a falar com ele amanhã. Talvez se eu fosse ao asilo ver se precisavam de mais serviços de jardinagem ou naquela escola de música, parecia que sempre gostavam de uma ajuda extra com a faxina. Caminhando pelos corredores do centro comercial, meus pensamentos, de repente, foram interrompidos por um... atropelamento? Era um garoto, baixinho, aproximadamente uns nove, dez anos de idade - “me ajuda moço, me ajuda!” - disse ele desesperado e assustado. Foi quando vi, vindo logo atrás dele, três seguranças apontando em minha direção e cada um armado com bastões de contenção. Por alguns segundos fiquei paralisado de medo também. Os seguranças troncudos, vestidos de preto me lembraram muito os do CTN. Em algumas ocasiões não mediam esforços para manter a ordem no local.
         - Foge não ladrãozinho! Agora a gente te pega! – disse um deles pegando o menino pelo braço.
         - Não, me larga! - gritou o garoto chamando a atenção de todos ao redor. – Não deixa eles me levarem moço, por favor, eu não fiz nada!
         - Cala a boca, moleque! Fica quieto! - disse outro segurança.
         - Esperem, resolvi intervir; o que este garoto fez de tão grave?
         - Ele é um ladrãozinho safado, senhor. Não se preocupe, a gente cuida disso.
         Os seguranças o levaram apesar dele se debater e espernear pedido socorro. Na verdade, só incitou mais violência por parte deles. E todos que estavam em volta, olhando o garoto ser puxado e agredido, voltaram a sua caminhada como se nada demais tivesse acontecido. A frieza que as pessoas demonstravam em certas situações me assustava. Ninguém sequer esboçou qualquer reação para ajudar o menino. Nessas horas, me orgulhava de dizer que não era humano. Recusei-me a pensar ou agir dessa forma. Resolvi ir atrás deles na esperança de convencê-los a abrandar seu procedimento. Havia maneiras menos agressivas de lidar com essas situações, ainda mais, tratando-se de uma criança. Apertei o passo e consegui vê-los entrando num dos acessos ao estacionamento e abrindo uma porta numa das paredes no que se pareceu ser uma espécie de sala. Não consegui alcançá-los a tempo; eles a fecharam. Mal encostei meu rosto contra ela, ouvi um som abafado parecendo um tapa. Grudei meu ouvido e consegui ouvir o que pareceu um choro de criança seguido de um “pare”. Não suportei mais. Forcei a porta com o pé e, no que se abriu, vi uma cena de extrema covardia: os três seguranças em cima do garoto! Enquanto um o segurava, outro lhe aplicava sucessivos tapas no rosto; o terceiro, o cutucava nas costas com o bastão de contenção. Com o barulho da porta sendo arrombada, eles cessaram a brutalidade.
         - Sai daqui, cara, isso não é assunto seu! – disse um deles.
         - SOLTE O MENINO! – gritei enfático. Um deles veio pra cima de mim. Eu peguei-o pelo colarinho e joguei-o contra a parede. Somente dessa forma os outros dois largaram o menino e voltaram suas atenções para mim. O que veio na frente tentou me atacar com o bastão. Tentou! Fui mais rápido! Segurei-o com a mão, girei e acertei uma cotovelada no seu nariz. Enquanto este caía no chão, com o rosto em sangue, o que veio atrás agarrou meu braço e esmurrou meu estômago. Cheguei a curvar mais pelo impacto do que pela dor – que não senti. Então, enquanto ele segurava meu braço também agarrei o dele e puxei com toda força fazendo com que minha cabeça se chocasse contra sua testa. Com o terceiro e último segurança caído no chão, voltei-me para o menino.
– Vamos sair daqui! – puxei-o pelo braço e corri em disparada em direção a porta e a saída do centro comercial antes que alguém percebesse meu impetuoso resgate e chamasse mais seguranças.
         Chegando à calçada, levei-o direto a estação de metrô mais próxima. Era o transporte mais rápido que havia, evitando assim qualquer tipo de perseguição. O menino não falou, mas pareceu concordar.
         - Qual é o seu nome? – perguntei já dentro do trem.
         - É Pedro, moço, respondeu meio assustado ainda. Os hematomas no rosto lhe davam motivo para tal.
         - Por que o pegaram, Pedro?
         - Porque... – hesitou um pouco, mas respondeu. - Eles acharam que eu peguei alguma coisa. Mas não peguei nada não moço! Sou inocente!
         - Me chame de Davi, Pedro e não se preocupe, está a salvo agora – tentei acalmá-lo dizendo isso. – Onde mora? Levarei você pra casa.
         - Moro no campo habitacional trinta e um, na zona norte.
         - Tudo bem, chegaremos logo.
         Cinco estações e mais três quarteirões a pé depois, chegamos ao chamado CAHESP, unidade trinta e um. Segundo o governo, o local servirá em breve para a construção de moradias para as pessoas de baixa renda. O que se via na verdade era um amontoado de barracos colados um ao outro, quase sem nenhuma organização e muito menos limpeza. Lugares assim eram chamados de favelas no passado. Era incrível como a humanidade evoluía em alguns pontos, mas em outros parecia simplesmente relutar quando o assunto envolvia pessoas carentes.
         - É ali, Davi, no vinte e dois, Pedro me mostrou seu lar, modesto, claro, como todos os outros. – Daqui eu vou sozinho, Davi, obrigado – disse ele apressado.
         - Espere Pedro, deixe-me levá-lo até a porta, talvez eu deva falar com seus pais.
         - Não Davi, não precisa, eu... – ele foi interrompido por um homem que saiu de sua casa parecendo mais um bicho do que um ser humano: gordo, sujo, barbudo, roupas igualmente sujas e rasgadas, mais balbuciava do que falava. Obviamente estava bêbado.
         - Onde tu tava, muleque? Já falei pra num sai sem eu dexá! Vô te ensiná a não me obedecê!
         Ele pegou Pedro pela camisa e fechou sua mão em direção ao menino. Ele bateria em Pedro ali mesmo na rua com todos olhando. Bateria, porque eu não deixei! Quando ele iria desferir o soco no garoto, segurei seu pulso; foi quando ele notou minha presença.
         - O quê que... quem é... hu, aaahhh! – não o deixei falar; apertei seu pulso e imediatamente ele largou Pedro. Com mais força, o fiz se ajoelhar diante de nós dois.
         - Faz isso não Davi, por favor! – tentei ignorar os apelos de Pedro, mas era difícil. A compaixão que ele demonstrava pelo pai, mesmo com o que estava prestes a fazer, foi comovente. – Ele é meu pai Davi, solta ele! – e o fiz. Havia muita gente em volta e eu não queria chamar mais atenção. Resolvi ir, mas não antes de deixar um aviso.
         - Eu voltarei depois para ver o menino, dirigi-me ao pai ainda ajoelhado no chão; se eu ver ou perceber que ele foi agredido, você receberá o triplo! Entendeu? – ele resmungou algo intraduzível e baixou a cabeça. Esperei mesmo que ele tivesse entendido.
         - Tá tudo bem Davi, pode ir.
         - Preciso mesmo ir Pedro. Voltarei o mais rápido que puder.
         - Tá Davi, obrigado – me despedi e na saída do campo habitacional dei uma última olhada para trás e vi Pedro segurando seu pai pelo braço e o levando para casa. Senti um certo arrependimento ao deixá-lo sozinho.
        

*

Dois dias depois, voltei para ver Pedro. Queria poder voltar antes, mas fiquei receoso com a atenção que chamei para mim tanto no centro comercial, quanto no campo habitacional. Com o resto dos meus créditos trouxe um presente para ele: um carrinho em miniatura. Não havia muito destes. Foi mesmo sorte tê-lo achado. Estava bem próximo da casa de Pedro quando vi, mais abaixo, a minha direita, pessoas correndo e um tumulto perto do que seria uma praça. Não queria desviar do meu caminho e voltei-me para a casa do Pedro. Foi então que ouvi alguém gritando: “É ELE SIM, É O PEDRINHO!” Mal podia acreditar! Será que era o mesmo Pedro? Fiquei em dúvida alguns segundos se iria ou não ver. Decidi ir, não havia outra alternativa. Cheguei até onde estava a multidão. Eles tinham feito um círculo em volta de um corpo; um corpo pequeno para a idade, nove, dez anos; muito baixinho, mas já falava como um homem. Pedro, um garoto inocente, morto pelo quê, por quem? Era claro que esta pergunta tinha uma resposta. Eu avisei a ele. Se acontecesse algo, se ele fizesse algo... Isso não ficaria em pune! Ele não matou apenas o filho, matou também as esperanças e os sonhos que este garoto tinha ou poderia ter. Não lhe deu a mínima chance. Eu também não poderia dar! De repente, senti uma espécie de aperto dentro de mim. Algo querendo sair. Senti um líquido oleoso, amarelado, escorrer do meu olho esquerdo... Não acreditei! Eu podia chorar?! Esqueci um pouco disto e me voltei para Pedro. Resolvi deixar meu presente ao seu lado. Exatamente como deveria ter sido e fui atrás do seu assassino. Tive um palpite de onde ele poderia estar. Havia um bar em frente ao campo habitacional, atravessando a avenida. O lugar era pequeno, mas movimentado. Havia diversas mesas na entrada e nos fundos um balcão onde serviam as bebidas. Vi-o logo de cara, foi fácil reconhecê-lo, estava do mesmo jeito e com a mesma roupa. Cheguei a sentir pena. Aproximei-me e toquei no seu ombro para chamar sua atenção.
         - O quê que é que você quer?
         - Não se lembra de mim, eu o avisei.
         - Me avisou, avisou do quê mané, sai fora!
         Minha paciência se esgotou. Puxei-o pela camisa e joguei-o no chão. Ele se assustou e tentou se levantar, mas eu não deixei. Peguei-o pela gola da camisa e lhe dei um soco, depois outro e mais outro...
         - Eu o avisei que se fizesse algo com Pedro você receberia o troco! POR QUE FEZ ISSO? POR QUE O MATOU? Era apenas uma criança! POR QUÊ?
         Não sei por quanto tempo o estava esmurrando. Então, algumas pessoas do bar me seguraram e me afastaram dele.
         - ME DEIXEM, gritei, não viram o que ele fez, ele merece!
         Havia uns cinco ou seis em cima de mim. Eu estava transtornado. Não sei como consegui ouvir a voz da mulher que o atendia no bar, mas ainda bem que eu ouvi, pois senão, cometeria um grande erro.
         - Para moço, para! – ela suplicou. – Não foi ele, ele não matou Pedrinho!
         - O quê?! Como não foi ele? Ele bate no filho!
         - Bate sim, mas só quando tá bêbado. Ele nunca mataria o filho.
         - Mas então quem...
         - Foi o Tino! Ele é o traficante daqui. O Pedrinho era o fio dele e devia dinheiro. Não foi o pai moço, ele é inocente!
         Inocente! Quem de fato era inocente nesse mundo. Se um garoto que roubava e vendia drogas era inocente, se um pai negligente e alcoólatra era inocente, então não sabia mais o que era inocência. Será que só eu era ainda tão inocente ou não mais? Eles me soltaram. Então comecei a correr. Corri e fugi para longe. Longe destas pessoas, longe de Pedro, de tudo. Uma, duas horas depois percebi que, por mais que eu corresse, não poderia fugir de mim mesmo. Esta fúria que sentia, esta força dentro de mim, não era normal. Não foi a primeira vez e não seria a última. Havia apenas uma maneira de saber o que estava realmente acontecendo comigo. Existia uma pessoa que poderia me ajudar, mas era a última pessoa que eu procuraria. Infelizmente não tinha escolha se eu não quisesse machucar mais ninguém. Então fui procurá-la e sabia exatamente onde ela estava. Carlos teria que esperar mais um pouco...

Comentários

  1. Acho curioso a história deste aqui! Eu a bolei para um outro personagem, mas nunca foi para o papel e só ficou na minha cabeça por muito tempo. Até que criei Davi e precisando escrever sobre, me veio à mente esta que estava guardada nos porões do meu cérebro. Modifiquei pouca coisa (obviamente, o personagem principal), mas fiquei satisfeito com o resultado.

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