Os Pecados dos Pais



Miguel era um jovem que levava a vida totalmente desregrada. Ao completar a maioridade, é visitado pelo Arcanjo Gabriel que lhe diz que sua encarnação anterior - um homem íntegro, porém, descrente - acordou com ele que, se tivesse os poderes de um anjo, faria grande diferença no mundo.

Não encontrando outra solução a não ser retificar o acordo, Miguel é nomeado o Arcanjo na Terra e deverá expurgar o mal das almas dos homens, incluindo sua própria.



          A pequena igreja de São Cristóvão, no bairro da Aclimação, perto do centro, nunca fora tão conhecida, porém, era bem frequentada pelos seus fiéis. De construção tradicional tinha como destaque no altar uma estátua do santo que abençoava a igreja e um enorme crucifixo, a representação do sacrifício que Jesus fez por todos nós. Mas não era Jesus que estava na cruz e sim o corpo do padre Manoel que a pouco mais de quinze anos era o titular da paróquia. Foi dona Maria das Dores quem o viu primeiro. Beata da igreja e responsável por abri-la pontualmente às cinco e meia da manhã, logo que entrou sentiu um cheiro forte de carne queimada, mas não sabia da onde vinha até olhar para o altar e ver o padre Manoel carbonizado e pregado na cruz como um bizarro cristo. Não se soube se foi tal imagem ou o cheiro de carne e tecido queimado que fez dona Maria das Dores desmaiar, contudo, foi assim que dois policiais a encontraram cerca de meia hora depois de aberta a igreja. Pouco mais de duas horas depois, todos já sabiam do acontecido: moradores dos arredores, as polícias civil e militar e boa parte da imprensa. Estavam todos no local especulando o que, em nome de Deus, teria feito tal horror com um padre tão benévolo como Manoel Bendito dos Santos.

         Miguel já sabia. Pelo menos, parte da verdade.

         Sabia até então que este fora o terceiro ataque, por assim dizer, a um padre. O primeiro havia ocorrido três semanas atrás na igreja de Santo Antônio das Promessas ao norte de Salvador. Lá também foi encontrado o corpo cremado do padre Vinícius de Almeida Jordão numa cruz da mesma igreja; há duas semanas foi em Porto Alegre que encontraram o corpo do padre Marcelo Garnieri carbonizado e pregado na cruz do altar; e agora em São Paulo.

         Ele não estava conseguindo chegar a tempo de impedir os assassinatos. E estava cansado. De todos os dons que recebera, o teletransporte era um dos que ainda não estava habituado. Saltar a longas distâncias era como correr uma maratona; e ele sentia que ali não era sua última parada. Gabriel o estava orientando nesses incidentes dizendo aonde tinha que ir, porém, sem conseguir cessar o horror.

         - Já descobriram quem está fazendo isso? – perguntou Miguel enquanto os paramédicos levavam o corpo do padre para uma ambulância.

         - Acreditamos ser um espírito renegado, respondeu Gabriel.

         - E por que é tão difícil localizá-lo e descobrir para onde vai?

         - Parece ser muito poderoso mesmo para nós.

         - Sei...

         - Mas, não descobriste mais nada.

         - Na verdade sim...

         Miguel então narrou suas investigações. Outro de seus dons, e este sim gostava, era de ficar invisível aos olhos terrenos. Ele invadiu cada um dos aposentos dos padres na esperança de achar algo que levasse a um possível assassino. No primeiro, em Salvador, não notou nada de tão estranho; mas no segundo, em Porto Alegre, sim, e também em São Paulo. Miguel disse a Gabriel que encontrou nos pertences dos três padres anéis idênticos que traziam entalhados uma cruz de ouro sobre o que parecia ser um disco de rubi; e gravado em seu interior uma inscrição em latim que não soube traduzir, contudo, pela descrição, Gabriel já sabia do que se tratava.

         - Exorcistas! – exclamou Miguel.

         - Sim, afirmou Gabriel; alguns adquiriram o hábito de usar certos instrumentos de proteção. Estes anéis desempenham esta função.

         - Então alguém ou algo está matando exorcistas, mas por quê?

         - Tu tens que descobrir antes que este mal se alastre a outros ofícios sagrados.

         - Falar é fácil! Cê podia me dar uma mão.

         - Do que precisas?

         - Descobrir se há mais algum exorcista vivendo aqui.

         - Aguarde.

         Então Gabriel desapareceu como se nunca estivesse estado ali. E enquanto os fiéis e parentes do padre choravam sua perda, Miguel ficou com a sensação que Gabriel sabia muito mais do que queria contar. Um minuto depois, o arcanjo retornou.

         - E então? – perguntou Miguel.

         - Há mais um próximo vivendo em uma cidade que vós nomeastes Ouro Preto.

         - Em Minas! Ah, qualé, vou ter que saltar de novo, lamentou Miguel.

         - Sim. E rápido. O ser que está perpetuando essas atrocidades pode já saber disto.

         - Certo... Quanto a isso, não tentaram mesmo descobrir o que ou quem é o assassino de exorcistas?

         - Como havia dito, Gabriel se aproximou e ficou praticamente cara a cara com Miguel; é um espírito renegado. Seres assim, quando na Terra, conseguem disfarçar seus intentos e feições. Se pudéssemos saber de todos os seres malignos ou não que habitam o plano terreno, não seria necessário ter um agente aqui, não achas?

         - Boa resposta, disse Miguel dando um passo para trás; por enquanto... Tem ideia do nome da igreja?

         - Ela recebeste o nome de São Bento de Ouro Preto.

         - Muito bem, já vi algumas fotos de O.P. na internet, então... – Então foi Miguel que desapareceu como se nunca estivesse estado ali. Um minuto depois se encontrava no lugar que fotografou, por assim dizer, na mente.

         - Esse sem dúvida é o jeito mais rápido e barato de se fazer turismo! – disse um tanto ofegante. Recuperado o fôlego, começou a vasculhar a cidade a procura da igreja. Encontrou-a cerca de duas horas depois. E sem perder tempo e sem ser visto, literalmente, entrou. Nesta hora, não estava sendo realizada nenhuma missa, mas viu, num recinto adjacente ao altar, um padre acompanhado de duas freiras. Conversavam sobre algo e, quando Miguel se aproximou, elas retiraram-se em direção a saída.

         - Até depois padre Antônio, disse uma das freiras.

         - Até depois, vão com Deus! – disse o padre com jeito de bonachão.

         Ele então se retirou, mas para o interior da igreja. Miguel o seguiu. Num pequeno corredor, o padre abriu uma porta que Miguel percebeu ser o seu quarto; ele abriu uma gaveta de um criado-mudo e retirou uma grande bíblia de capa preta. Fechou-a e retirou-se do quarto sem saber do visitante que deixou lá.

         - Certo, se eu fosse um anel... – ele começou a vasculhar o quarto. Ele abriu o guarda-roupa e remexeu com cuidado. Encontrou uma caixa de madeira fechada com um cadeado. Então revelou mais um de seus dons, porém, este não lhe foi dado por um arcanjo. Retirou do bolso seu chaveiro onde havia uma chave-mestra; era com ela que abrira muitos cadeados durante seu período marginal. Agora seu uso era para algo mais nobre – gostava de pensar assim. Ao abri-la, notou próximo a um medalhão com a imagem de Nossa Senhora um anel com uma cruz de ouro sobre uma pedra de rubi.

         - Agora é esperar nosso espírito renegado, pensara alto colocando a caixa de volta a seu lugar.

         Durante cinco dias, Miguel ficou indo e voltando de São Paulo para Minas Gerais e vice-versa, sempre próximo do padre, vigiando seus passos como um guarda-costas, ou melhor, um anjo da guarda. Ele alternava a vigilância ora de dia, ora de noite e até então não havia visto sinal de nenhuma entidade ou criatura maligna que pudesse ameaçar a vida do padre Antônio. Contudo, no sexto dia... Passava das onze da noite quando Miguel o viu. De onde estava, em frente à porta principal da igreja, parecia um meteoro indo em direção a ela, e rápido. Miguel automaticamente cobriu o rosto com os braços para se proteger dos possíveis destroços quando o que quer que fosse colidiria com o telhado da igreja. O que aconteceu na verdade foi que aquilo atravessou o telhado sem danificá-lo ou mesmo fazer barulho.

         Mesmo surpreso, Miguel seguiu para lá, no entanto, encontrou a porta da igreja trancada. Sem perder tempo, deu um pequeno salto para dentro e se surpreendeu mais uma vez. A criatura era enorme, deveria ter cinco metros de altura, pelo menos; suas grandes asas brancas e uma vestimenta que lhe lembrava guerreiros medievais deixaram-no confuso quanto sua origem. Porém, tudo isso não lhe chamou tanta atenção quanto a cabeça de águia no lugar da de um homem e a grande espada na mão direita com uma lâmina flamejante. Na mão esquerda, segurava o padre Antônio pelo pescoço e Miguel, com sua espada em punho, decidiu agir.

         - Você, solte-o! – gritou para a criatura alada. Esta por sua vez virou em sua direção seus grandes olhos amarelados e redondos soltando um guincho ensurdecedor do bico. No entanto, voltou-se para o padre e apontou em sua direção sua espada de fogo pronto para vará-lo. Então, como em resposta às súplicas do padre a espada jogada por Miguel interrompeu o intento do anjo vingador provocando outro guincho alto.

         - Eu disse para soltá-lo! – gritou tentando devolver o gesto.

         A criatura, de forma assustadora e rápida, soltou o padre e avançou sobre Miguel, que mal teve tempo de esboçar uma defesa, prendendo-o no chão pelo pescoço.

         - O que fazes aqui? – perguntou a criatura para a surpresa de Miguel. – Por que estás me atrapalhando?

         - Por que está matando padres?

         - Estou lhes punido pelos seus pecados!

         - Por quê? Por fazerem exorcismo?

         - Exorcismo? – espantou-se a criatura. – Veja com teus próprios olhos o exorcismo destes infiéis!

         Ela colocou seus enormes dedos sobre os olhos de Miguel que foram invadidos por uma luz forte e quente. Ele chegou a soltar um grito de dor e quando passou, não estava mais na igreja em Minas. Estava em um quarto em algum lugar que não reconheceu. Ele olhou para o lado e viu amarrada a uma cama com cordas nos pulsos uma garota de aparente doze anos; ao pé, uma senhora que Miguel pensou ser sua mãe. Antes que pudesse esboçar intento de falar, entrou no quarto um padre que Miguel reconheceu de fotos.

         - Padre Vinícius, disse a mãe da garota; parece que ela está pior, não diz coisa com coisa, mas algumas são tão horríveis... até sobre o senhor...

         - O demônio a está tomando por completo, disse o padre a senhora; por isso, estou vindo e vou continuar até expulsar esse ser maligno desta inocente.

         - Padre, nunca vou poder agradecer o senhor pelo que tem feito por minha filha, disse a senhora com lágrimas nos olhos; só Deus mesmo... – o padre a interrompeu colocando sua mão em seu ombro.

         - Não é necessário agradecer, apenas tenha fé em Deus e em Jesus.

         - Eu tenho padre!

         - Muito bem, minha filha, deixe-me agora e ore bastante.

         - Eu estarei aqui do lado padre, disse a senhora se retirando enquanto o padre Vinícius dirigia-se a garota amarrada a cama.

         Miguel então se deu conta de onde estava, mesmo achando impossível, e também que ninguém notou sua presença. Devia ser por isso que o padre Vinícius achou-se com liberdade para sentar ao lado da menina e passar suavemente a mão em seu rosto. Então ela resolveu falar, porém, baixinho:

         - Padre, eu juro que não falo mais nada pra minha mãe, disse a menina com a voz embargada pelas lágrimas que começavam a correr pelo seu rosto; já não tenho mais demônio em mim, padre... Acho que tô curada, por favor... – as lágrimas correram um pouco mais, no entanto, não convenceram o padre Vinícius.

         - Isto sou eu e Deus que decidimos, minha filha. Tente ficar quietinha agora.

         Então, com certa calma, o padre subiu na cama onde estava a menina e levantou a camisola que estava usando; depois abriu o zíper da sua calça e devagar penetrou seu membro entre as pernas magras e frágeis da garota. Ela fez menção de soltar um grito, porém, o padre tapou seus lábios com sua mão. E aumentou o som das suas invocações e orações enquanto realizava o ato hediondo.

         Miguel estava ali, abismado e enojado com a cena. Agiu instintivamente e tentou tirar o padre de cima da garota, porém, suas mãos transpassaram pelo reverendo com se fosse um fantasma.

         - Não, disse desesperadamente; pare, deixa ela... – não conseguiu terminar o que ia dizer. Uma luz forte e quente invadiu seus olhos o cegando momentaneamente. Quando conseguiu abri-los, não viu mais o padre Vinícius e nem a garota. Estava no que lhe pareceu um outro quarto. Ouviu um gemido às suas costas e quando virou, viu outra cena perturbadora. Havia um senhor sentado numa cadeira de cabelos grisalhos e de batina com uma garota em seu colo. Ela orava ora um pai-nosso ora uma ave-maria. Quando Miguel se aproximou, reconheceu o padre Guarnieri. E percebeu também que sua batina estava levantada na altura da cintura e a garota com um vestido totalmente aberto. Ele se afastou como se os dois pudessem vê-lo e gritou:

         - Tá, eu já entendi, me tira daqui falou, me leva de volta!

         Novamente a luz forte o cegou, contudo, ele não voltou para a igreja em Minas e sim para outro quarto. Dessa vez, viu o padre Manoel abusando de uma garota. Também muito jovem.

         - Chega! – gritando mais alto. – Eu disse que quero voltar agora!

         Mais uma vez a luz o cegou, mas seu pedido foi adiado. Estava em outro recinto e reconheceu logo o padre Antônio, porém, não a garota que estava nua e prostrada à sua frente enquanto o padre invocava ordens para um suposto demônio deixar seu corpo.

         Miguel entregou-se ao desespero. Ajoelhou e colocou as mãos na cabeça, fazendo força para algumas lágrimas não escorrerem de seus olhos.

         - Por favor, por favor, disse com voz baixa; me deixa voltar, me deixa voltar...

         A luz chegou mais uma vez aos seus olhos e enfim, ele se encontrou de volta à igreja.

         - Agora, tu viste! – disse a enorme criatura dirigindo-se em direção ao padre deixando Miguel deitado no chão ainda com as imagens em sua mente. O enorme ser celestial aproximou-se e fitou-o deitado no chão e desmaiado. Ele apontou sua espada flamejante em sua direção e quando iniciou o movimento, mais uma vez, a trajetória fatal foi interrompida por outra espada que girou como um bumerangue impedindo o ataque.

         - Por que ainda me atrapalhas? – perguntou a criatura a Miguel. – Tu viste o que eles fizeram, eles devem ser punidos!

         - Também acho, disse Miguel; mas devem ser julgados e presos, não assim...

         - Só porque recebeste a nomeação divina consideras que tem o direito de me interpelar! Quem tu pensas que és, humano?

         - Sou o cara que vai ferrar com a tua vida! – respondeu Miguel antes de olhar para cima e gritar: – Gabriel, aqui!

         A criatura pareceu arregalar seus grandes olhos redondos quando olhou para o alto depois do chamado de Miguel. Uma luz branca e ofuscante invadiu a igreja e inundou o lugar obrigando Miguel, além de fechar os olhos, tapá-los com as mãos. Ele ouviu ainda o guincho alto do ser angelical que depois de alguns segundos parou.

Abrindo os olhos e não vendo sinal da enorme criatura, correu até onde estava ainda desmaiado o padre, certificando-se de que estava bem. Ao ver aquela figura ali indefesa que para muitos é sinônimo de salvação, auxílio, compaixão, tal um pai deve ser, Miguel só conseguiu ver ele e os outros naqueles atos hediondos. Ele forçou um pouco mais sua mão no cunho da espada e neste exato momento, Gabriel lhe falou:

         - Fizeste muito bem, Miguel, disse o arcanjo; porém, Miguel não se virou. – Ele é muito poderoso para nós arcanjos, conseguia anular sua localização na Terra, precisávamos de alguém próximo a ele. Viste, ninguém pode adquirir a justiça com as próprias mãos. Mesmo um querubim tem que responder a uma ordem superior.

         Então Miguel se virou.

         - Por que não me falaram? – indagou exasperado.

         - Eu também respondo a ordens superiores... e essa foi uma delas, respondeu o arcanjo.

         - Por quê? – insistiu Miguel.

         - Meus superiores, devido à natureza humana, resolveram que seria melhor tu não saber de detalhes por...

         - O quê? – interrompeu Miguel. – Acharam que se eu soubesse o que esses... o que eles fizeram eu iria concordar com o cabeça de pássaro, é isso?

         - Tu sabes, Miguel, que em várias situações a humanidade demonstrou...

         - Não tô falando da humanidade, tô falando de mim! Porra, eu aceitei o trampo porque eu quis, não por uma droga de acordo! Mas se vocês também concordaram, tem que confiar em mim e não me usar desse jeito!

         Miguel, enervado, embainhou sua espada e saiu dando às costas para Gabriel e ao padre desfalecido. Porém, o arcanjo lhe indagou:

         - Miguel, se fosse dada esta missão a ti, o que farias se soubesses o que os padres fizeram? – sem olhar para trás, Miguel respondeu:

         - Vai ter que dormir com a pergunta na cabeça, Gabriel. 

Comentários

  1. Gostei desta. Acho que consegui dar uma certa fluidez ao enredo. Mas considerarei opiniões adversas. Há imagens fortes e espero que ninguém se ofenda, não foi essa a intenção e sim denunciar, talvez, uma prática horrível. Além, claro de contar uma história.

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