Beatriz

Se Deus criou o homem e o homem criou as máquinas, será que elas têm tanto direito a vida quanto os humanos? É essa a pergunta que Davi, um ser (humano) de vida artificial, faz depois que fugiu do laboratório onde foi criado. Ele só quer o que todo mundo procura: um lugar no mundo e viver.

           Quatro meses! Estava há quatro meses escondido, fugindo de um local para outro para não ser encontrado por eles. No entanto, andava pela cidade como qualquer pessoa faria. Era uma maneira também de se esconder; já que, pensei, eles poderiam achar que ficaríamos escondidos o tempo todo, esperando acontecer algo. Acontecer o quê?! Quando pensava nos meus irmãos, ficava preocupado. Onde estarão? Podiam estar feridos? Foram encontrados? Tinha esperança que não e que estavam bem em algum lugar. Relutei em tentar entrar em contato com alguém temendo que nos encontrassem; entretanto, de alguma forma, tive que saber como estavam. De repente, como que programado vi, do outro lado da avenida, alguém que não esperava ver tão cedo, mas, ao mesmo tempo, como dizem, “morria de saudade”: era Beatriz. E ainda estava gravado na minha memória seus exatos um e setenta e cinco de altura; seu cabelo louro e encaracolado; seus olhos verdes, um pouco castanhos; a pele, que era de um branco suave como leite, surpreendentemente, estava... bronzeada? Decidi ir ao seu encontro não importando se iriam nos descobrir. O que eu sentia por ela e ainda sinto seria amor? Nós realmente somos capazes de amar? Sem querer, puxei do meu banco de memórias nossa época no Centro: aquele desastrado esbarrão nos corredores foi o primeiro contato; a troca de olhares nas salas de aula e nas reuniões começou a despertar não só interesse mútuo, como também, alheio. Por isso começamos a trocar mensagens via intranet do Centro – mensagens codificadas para que os diretores e tutores não desconfiassem. Numa dessas mensagens marcamos nosso primeiro encontro, num depósito no subsolo onde guardavam os mantimentos. No começo só conversávamos sobre nossa vida e os sonhos que tínhamos quando estivéssemos fora dele – na época nos prometiam isso.
           - Você gosta de mim, ela perguntou no nosso sexto encontro.
           - Gosto sim, respondi e o seu sorriso parecia... não sei o que parecia era a primeira vez que eu sentia algo assim.
           - Sabe o que as pessoas fazem quando se gostam?
           - Não, o quê?
           - Elas se beijam.
           - Como fazem isso, perguntei na mais sincera ingenuidade se isso é possível. Então ela se aproximou e seus lábios tocaram os meus.  Eram doces e tenros e pareceu que durou uma semana. Os encontros, conversas e os beijos continuaram até o dia em que aconteceu. Eu estava no dormitório junto com meu colega de quarto, Carlos, quando ouvimos um enorme barulho: viera da ala sul onde ficavam as quadras. Corremos até lá e foi espantoso. Toda a parede simplesmente estava no chão reduzido a blocos quebrados e poeira; no seu lugar, uma enorme abertura. Outros dos meus irmãos também estavam no local e começaram a correr em direção da abertura na parede. Entre os fugitivos estava Beatriz tão afoita quanto os demais.
           - Beatriz! – gritei.
           - Corra Davi! Fuja! – disse ela. – Antes que os guardas cheguem.
  Corri em sua direção e já do lado de fora consegui alcança-lá.
           - Para onde nós vamos? – perguntei.
           - É melhor nos separarmos, vai ficar mais difícil nos encontrarem – surpreendi-me com a determinação e ao mesmo tempo com a ideia dela.
           - Mas... – ela não me deixou terminar.
           - Daremos um jeito de nos encontrarmos de novo, eu prometo! – e nos despedimos, não com um beijo, e sim com cada um indo para um lado. Enquanto ela se afastava, me perguntava quando aconteceria nosso próximo encontro. E me perguntava isso até vê-la e enfim... Parei na sua frente esperando alguma reação, porém nada aconteceu.
           - Oi, quanto tempo!
           - Desculpe, mas eu o conheço? – a impassibilidade na sua voz foi um tapa na cara.
             - Calma, Beatriz, disse; não precisa fingir agora, ninguém irá perceber quem somos... – sua expressão, de seriedade e espanto, aos poucos mudou para raiva e medo.
           - Senhor, eu não sei quem você é e meu nome não é Beatriz, é Bianca, Bianca da Silva Vasconcelos; moro em São Paulo desde que nasci com meus pais e meus irmãos e nunca vi o senhor na vida! Me desculpe, mas estou com pressa! – a certeza em seus olhos quando disse aquilo me fizeram duvidar por alguns segundos que aquela mulher na minha frente poderia não ser a Beatriz que conheci. Mas, era a Beatriz! Os cabelos, os olhos, a altura, com exceção da pele bronzeada tudo conferia; e eu sei que não fomos criados para nos enganarmos quanto a isso.
           - Beatriz, eu insistia; está tudo bem não precisa ter medo estamos juntos agora.
           - Senhor, ela continuava convicta; se não me deixar ir vou chamar um policial – e de policiais era tudo o que eu não precisava naquele momento. Mas, se aquela não era a Beatriz, então quem era e como podia ser tão idêntica a minha amada. A não ser... só poderia ser isso! O Centro, além de ter implantado memórias de outras pessoas, poderia também ter nos “fabricados” a partir destas mesmas pessoas, copiando suas feições. Como puderam ser tão perversos. Ainda estava atordoado com tudo e a Bea... Bianca continuava com intenção de chamar a polícia
– Me desculpe, devo tê-la confundido com outra pessoa, ela aceitou educadamente e continuou seu caminho. Eu também tive que continuar o meu e arranjar um jeito de encontrar meus irmãos e Beatriz, a minha Beatriz. Mas, naquele momento, só queria achar algum lugar onde eu poderia ficar longe de tudo e de todos.

           Enquanto Davi refletia sobre o que faria de sua vida, a moça, que se dissera chamar Bianca, seguiu no sentido oposto deixando cair de seu olho esquerdo um líquido amarelado, semitransparente, oleoso ao toque e com um leve aroma de cereja.
           Lembrava uma lágrima humana.

Comentários

  1. Tive certa dificuldade neste. Talvez por conta dos diálogos e do núcleo da história ser um romance. Não sei se consegui passar toda paixão que Davi sente pela Beatriz.

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