O da Meia-Noite

Na existência há duas coisas que são bem similares: morrer e viver. E nem todos nós estamos preparados seja para um ou outro. 


em memória a
Onivaldo Damas


Fazia frio naquela noite. Havia uma névoa tênue estacionada ali e soprava um vento fino, tão fino, que pareciam que dedos entravam pelas mangas dos agasalhos fazendo a pele arrepiar-se até a alma.
         O homem sentado no banco de um ponto de ônibus parecia não se incomodar. Usava uma calça de um jeans um tanto surrado; nos pés, os tênis já apresentavam solas bem gastas; e por cima de uma simples camisa branca, vestia uma jaqueta bege que estava aberta apesar do clima. Era já um senhor. As rugas que marcavam seu rosto e alguns fios grisalhos no cabelo denunciavam isto, apesar do tom amorenado da pele dar-lhe uma impressão jovial.
         Estava ali cerca de uma hora. Olhou no relógio de pulso que marcava onze e meia e ali continuou. Ouviu passos vindos do seu lado direito e quando virou, viu uma linda jovem de cabelos lisos dourados, vividos olhos claros e com um singelo vestido branco. Aquele vento frio parecia cortar como uma faca quem se aventurar-se a enfrentá-lo.
         - Já passou o da meia-noite? – perguntou ela.
         - Está com pressa jovem? Ainda falta meia hora, respondeu o senhor.
         - Ah... – disse com um ar que misturava alívio e desapontamento. Sentou-se na outra extremidade do banco.
         - Que mal lhe pergunte, mas toda essa pressa... está indo para onde? – perguntou o senhor com certa sabedoria no olhar. A jovem o olhou desconfiada, parecia pensar no que falar, por fim lhe respondeu:
         - Estou indo embora. Quero fugir de tudo e todos!
         - Mas por que – insistiu o senhor – uma moça tão bonita precisa fugir?
         - Estou cansada... – disse-lhe com os olhos querendo lacrimejar. – Ninguém me entende... estou cansada dos maus tratos, das humilhações... só quero ir e nunca mais voltar! – dito isto, enxugou as lágrimas com as pontas dos dedos antes que molhassem todo seu rosto.
         - Sabe filha, começou a dizer o senhor depois de alguns segundos; às vezes, é até bom fugir de tudo que nos faz mal. Fugir para um lugar que só a gente conhece e ficar lá quietinho pensando no que fazer ou esquecer de tudo. Depois a gente volta com a mente limpa e a alma leve e continua de onde parou ou segue outro caminho. Mas fugir e só fugir não resolve. O problema não vai sumir, vai tá lá esperando a gente resolver ou não... – ele tinha uma voz apaziguadora e fraternal, ela pensou, e isso a acalmou um pouco.
         - É... acho que o senhor está certo, mas não pude mais suportar, disse ela.
         - Está tudo bem, minha jovem, está tudo bem...
         Passos incertos e apressados interromperam, por um instante, a conversa dos dois. Um garoto, não muito mais novo que aquela jovem, com a mesma pele alva, porém, de cabelos negros, aproximou-se. Vestia uma calça jeans escura, um par de tênis como que saindo da caixa e uma polo verde-clara.
         - Estão esperando o ônibus? – perguntou com gentileza na voz.
         - Apenas esta moça, respondeu o senhor olhando de leve para a loira de vestido branco.
         - É que... eu tenho que ir pra casa.
         - Mesmo. E onde você estava se me permite perguntar meu jovem?
         - Eu estava indo a uma festa com meus amigos e... – ele hesitou por um instante. Seu rosto mostrou uma expressão de esforço querendo puxar algo da memória. – ... E, bem... acho que chegamos lá, é isso.
         - E resolveu voltar sozinho pra sua casa?
         - Sim. Acho que tive que sair mais cedo... Alguém me disse que aqui passa um ônibus que dá pra chegar até minha casa.
         - Muito bem meu jovem, por que não se senta. Já, já ele chega, disse o senhor.
         - Tá, obrigado. – ele sentou-se bem ao lado da jovem que ainda tinha os olhos vermelhos das lágrimas que queriam sair. – Você tá bem? – perguntou.
         - Tô, respondeu delicadamente, mas desviando seu olhar do dele.
         Nisso, mais alguém se aproximou. Um rapaz, parecia ser mais velho que os outros dois. Usava vestimenta simples: um conjunto inteiro de agasalho; tênis um tanto surrados; e um boné debaixo do capuz que deixava sua pele mais escura do que já era.
         - É aqui que passa o da meia-noite? – perguntou. Sua voz era forte e rouca e transmitia um certo temor.
         - É aqui sim filho, respondeu o senhor. – Parece apressado como a jovem aqui. Não está fugindo também, está? – o rapaz fez uma expressão séria. Estranhou a pergunta ou seu interlocutor, porém, respondeu-a mesmo assim.
         - Não, não estou fugindo – deu um leve sorriso de canto – pelo menos, não mais! Por que, esses dois são fujões?
         Os dois entreolharam-se. A jovem pela primeira vez pareceu sentir frio e cruzou os braços. O garoto, no entanto, falou.
         - Não estou fugindo – respondeu – só estou esperando o ônibus pra voltar pra casa. – uma gargalhada forte e alta rompeu aquele cenário soturno, assustando ambos os jovens. Coube ao senhor questionar o rapaz.
         - Por que ri meu jovem? Foi algo que dissemos?
         - Acho que foi sim! – respondeu, terminando sua gargalhada.
         - O quê, pode nos dizer?
         - O que ele falou: vou pra casa... É que eu já mandei muita gente pra casa! Só não pensei que... – o ar irônico e brincalhão foram, de repente, substituídos por uma angústia.
         - Que você um dia iria pra casa? – continuou o senhor de onde o rapaz parou.
         - Eu sempre soube disto! – retrucou sério. – Mas não achei que... iria tão cedo.
         - É como diz o ditado, meu filho: colhemos aquilo que plantamos, disse o senhor.
         - É, tem toda a razão tio! – disse o rapaz. Depois só se ouviu o assovio do vento e alguns pingos querendo garoar. No banco, o garoto ficou com uma expressão confusa no rosto e com essa expressão encarou a jovem como que perguntando algo. Ela apenas lhe deu um olhar triste e baixou seus olhos, apertando mais ainda seus braços ao corpo.
         Faltando poucos minutos para meia-noite, chegava ali um velho. Vestia um terno cinza-escuro, uma gravata preta com uma camisa branca e sapatos de couro marrom nos pés.  De acentuada pele negra e com o couro cabeludo totalmente branco, contrastava aquela paisagem lúgubre o seu enorme sorriso combinando com o cabelo.
         - Boa noite a todos, boa noite, disse se aproximando do senhor que, ao lado deste, parecia remoçar.
         - Boa noite senhor, veio pegar o da meia-noite?
         - Sim, vim sim. Me disseram que passa aqui.
         - Passa sim senhor! Mais um pouco e o senhor não o pega.
         - É... me atrasei por causa dessa coisinha aqui. – o velho sentou-se e só então todos repararam no pequeno pacote que ele trazia nos braços. Estava envolto em um delicado cobertor azul-claro e quando ele descobriu uma parte, revelou uma linda bebê com poucos tufos negros na cabecinha. Ela deu um leve bocejo e voltou ao seu sono.
         - Que bonitinha! – disse o garoto.
         - É muito linda mesmo, disse o senhor.
         - Ela tem nome? – perguntou a jovem.
         - É Clara, disse o velho. – Os pais a chamam de Clarinha.
         - Sem dúvida é uma benção! – disse o senhor.
         - Se não é! – concordou o velho. – Sabe, eu já fiz de tudo nessa vida. Vi e vivi tudo que Deus me permitiu... e essa aqui também. Viu tudo que Deus lhe permitiu. Viu seus pais, seus irmãos, amou e foi amada. É uma benção, não se enganem.  
         Cada um deles: a jovem, o garoto, o senhor e até aquele rapaz olharam mais uma vez para Clara e depois para eles mesmos. Ao longe, ouviu-se sinos de uma igreja badalarem doze vezes; um ônibus de aparência comum, porém, todo preto aproximou-se e parou em frente ao ponto. Quase passou despercebido se não fosse pelo senhor anunciá-lo:
         - Gente, o da meia-noite já vai partir! – disse e todos olhavam espantados e curiosos para aquele soturno veículo.
         A porta da frente abriu-se e lá dentro podia-se ver o motorista. Estava um tanto escuro e o uniforme preto com um quepe combinando deixava turva a aparência daquele ser de rosto afunilado, magro e de pele alva. O senhor então subiu no veículo e o motorista lhe entregou algo semelhante a cartões. Quando voltou, dirigiu-se primeiro ao velho.
         - Estes aqui são para o senhor e a pequena. – e ele lhe entregou dois pequenos cartões que pareciam feitos de plástico. Depois, deu atenção ao garoto. – Filho, este aqui é seu, e entregou-lhe também um cartão. Ele encarou o senhor e foi como se parte daquela névoa que insistia em permanecer ali se dissipasse. Algumas lágrimas correram pelo seu rosto e ele disse:
         - Mas, eu quero voltar pra minha casa... com meus pais e irmãos...
         - Ora meu filho, você está voltando pra sua casa! Todos nós vamos um dia, mais cedo ou mais tarde, disse o senhor. O garoto admirou mais uma vez Clara e assentiu com a cabeça para o senhor que lhes disse:
         - Vocês podem entrar por ali, apontou a porta de trás do ônibus que se abriu tão logo o senhor indicou. O velho, carregando Clara, e o garoto foram em sua direção. Detiveram-se por alguns instantes, no entanto.
         - Fiquem com Deus! – disse o velho e entrou. O garoto ficou um pouco mais e acenou para a jovem. Esta retornou o gesto não se importando mais com as lágrimas que corriam pelo seu rosto. Por fim, ele entrou.
         O senhor então foi ter com os dois que ainda estavam ali.
         - Vocês, meus jovens, terão que entrar pela frente, disse com pena nos olhos. – Terão que passar pela catraca...
         O rapaz foi o primeiro. Meteu as mãos nos bolsos e com uma expressão carrancuda foi em direção ao ônibus. Porém, deteve-se. Encarou o senhor e tentou lhe dizer algo, mas não conseguiu.
         - Vá com Deus, meu filho, disse-lhe e ele entrou no veículo.
         A jovem ainda estava no banco. O senhor sentou-se ao seu lado e esperou que ela lhe falasse.
         - Acho que estou com medo... – disse-lhe enxugando o rosto com as mãos. O senhor então as pegou e aninho-as entre as suas próprias e falou:
         - Não há mais por que ter medo, não mais! Não é o fim. Não viu Clara? É só uma jornada que terminou. Outra há de começar...
         - Mas será que... – engoliu o choro e continuou. – Será que vão me perdoar?
         - Oh, minha querida, é claro que sim, respondeu o senhor; mas é você que deve se perdoar primeiro. – ela então sorriu pela primeira vez desde que chegara ali e, antes de entrar naquele coletivo negreiro, abraçou aquele senhor como uma filha abraçando o pai. E assim como chegou, silencioso e repentino, assim também partiu. Juntos, a névoa e a fina garoa que pairavam ali, também se esvaíram. A paisagem ficou mais nítida e quem passasse ali, em frente aquele ponto de ônibus, podia ver que atrás dele havia um muro onde se encontrava um necrotério do outro lado pertencente a um hospital logo acima.
O senhor foi-se então embora carregando uma pequena bolsa com um logotipo impresso de uma empresa de limpeza qualquer. Amanhã entraria cedo no trabalho. Amanhã seria outro dia. 

Comentários

  1. Se há algum tipo de moral incutido neste texto, creio que seja apenas um: viva! Cumpra seu papel no mundo, faça o melhor que puder desde que não prejudique seu próximo e viva apenas.

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