Invasão
Miguel era um jovem que levava a vida totalmente desregrada. Ao completar a maioridade, é visitado pelo Arcanjo Gabriel que lhe diz que sua encarnação anterior - um homem íntegro, porém, descrente - acordou com ele que, se tivesse os poderes de um anjo, faria grande diferença no mundo.
Miguel
não tinha reparado em nada disso. Nunca foi muito de assistir TV; e ler jornal
então, só mesmo a seção de esportes. Foi preciso que viesse o Arcanjo Gabriel
pessoalmente incumbir-lhe da missão de investigar o edifício.
-
Estás errado, disse Gabriel, nada disso deveria estar acontecendo.
-
Peraí, então é verdade? – indagou Miguel – O prédio tá mesmo assombrado! Mas de
quê?
-
Demônios, respondeu Gabriel.
-
Demônios! Mas como demônios subiram aqui?
-
É o que tu vais descobrir.
E
isso foi no dia anterior. Já eram três e meia. Miguel não teve problemas para
pular um dos muros do lado do edifício – preferiu assim para não correr o risco
de ser visto; também não teve problemas para passar pela porta principal: era
de vidro e estava quebrada, tapada apenas por um tapume de madeira. Lembrou-se
de trazer uma lanterna e com ela guiou-se pelos degraus da escada; ele parava
de andar em andar olhando, procurando alguma coisa. No quarto andar pareceu que
viu alguma coisa: eram como sombras e muito rápidas. Elas entraram num dos
apartamentos e Miguel as seguiu. Quando entrou, a porta fechou-se de repente e
apenas a tímida luz da madrugada e da sua lanterna iluminaram a sala do
apartamento. Ele foi em direção à porta e parou por um instante. Começou a
ouvir nas suas costas ruídos de passos, sussurros, gemidos... Ele voltou-se e
viu personagens dantescos diante dele. Os cadáveres ambulantes, como descreveu
um dos moradores, não faziam jus à aparência: uma mistura de porcos com
lagartos, sibilando como cobras. Eram dezenas e o cercaram. E como que
ordenado, foram todos para cima dele, rasgando suas roupas, agredindo-o,
vociferando sem parar: “Vá embora! Vá embora!”.
Miguel
mal teve tempo de se proteger; aquelas criaturas grotescas em cima dele
praticamente não lhe deixavam respirar. Ele já estava enfastiado daquele ataque
e tentava alcançar sua arma quando a investida cessou. Miguel, ainda ajoelhado
no chão, olhou em volta e não viu, até onde a visão permitia, qualquer coisa
parecida com um demônio. Levantou-se e, fora algumas escoriações e rasgos nas
roupas, estava bem. Tentaram assustá-lo e talvez para demonstrar que não
funcionou ele gritou:
-
Vocês sabem quem eu sou! Eu não vou embora!
Resolveu
continuar. Como não viu sinal de mais demônios naquele andar subiu para o
próximo sem saber o que o aguardava. No quinto, viu uma porta de um dos
apartamentos aberta e mesmo correndo o risco de sofrer novo ataque entrou;
desta vez, no entanto, ficou preparado – sacou logo sua espada e começou a
vasculhar a sala em busca de sinal de vida. Porém, foi uma voz, que ele achou
muito familiar, que lhe chamou a atenção:
-
Miguel! – era um homem alto, negro, com a barba e o cabelo parcialmente
grisalhos.
-
Pai?! – disse espantado Miguel quando apontou a luz da lanterna em direção à
voz. – Mas como... é você mesmo?
-
Miguel, o que pensa que está fazendo? – perguntou o tal homem que aparentava
ser o pai falecido de Miguel.
-
Como assim o que eu tô fazendo, eu... é você mesmo, pai?
-
Aonde acha que isso vai te levar, Miguel! Acha mesmo que isso corrigirá seus
erros, que você será perdoado, que vai pro Céu, é isso! – ele se aproximava
dele aos poucos enquanto falava.
-
Eu... por que está dizendo isso? Eu sei dos meus erros. Não faço isso esperando
redenção estou cumprindo um acordo... eu...
– Miguel ficou sem reação naquele momento.
-
Está perdendo seu tempo, Miguel. Você vai para baixo por causa de todos os seus
crimes! É por sua causa que eu estou lá. Me mandaram aqui apenas para lhe dizer
isto: pare com o que está fazendo é
perda de tempo! – Então, Miguel forçou o punho que segurava com a espada.
-
Agora eu tenho certeza de que você não é meu pai! – Apenas um movimento rápido
com a espada ele decepou a cabeça da criatura, espatifando-se no chão, e
desfazendo-se como um fruto podre em centenas de vermes. O mesmo aconteceu com
o resto do corpo.
Vendo
aquela cena grotesca, Miguel deixou uma lágrima escorrer de seu olho direito.
Então, respirou fundo e erguendo a cabeça declarou:
-
Meu pai sempre me dizia pra nunca desistir se fizesse algo para o bem e eu não
vou desistir! – Gritava de novo, mas, desta vez, parecia ser para ele mesmo.
Miguel devia continuar sua missão e, empunhando a espada ainda mais firme,
subiu para o próximo andar.
Ao
chegar, percebeu um dos apartamentos com a porta aberta e ouviu o que pareciam
ser vozes. Ele entrou e fora a escuridão de sempre, não havia nada ali. Então
ele virou rapidamente a lanterna para a sua esquerda percebendo que havia
alguém daquele lado; iluminou uma garota que de primeiro escondeu suas feições
da luz repentina para, logo depois, revelar uma rara beleza negra de olhos e
cabelos que brilhavam mesmo ali.
-
Alessandra! – espantou-se Miguel.
-
Oi, Guel, ela deu um leve sorriso de canto.
-
Você... tá morta!
-
Sim estou, por sua culpa!
-
Alê, não foi bem assim eu...
-
Foi, a culpa foi toda sua. Lembra quando nos amávamos, fazíamos amor como se
não houvesse amanhã. Aí então, você resolveu virar um anjinho pra agradar não
sei quem e, já que, não podiam machucar o queridinho do Céu descontaram em mim!
Me mataram Miguel! Vai dizer que não sabia que isso podia acontecer?
Miguel
não respondeu, apenas ouviu com uma expressão séria. Ela se aproximou e o
agarrou pelo seu casaco com as duas mãos:
-
Não vai falar nada! Vai ficar aí parado! Fala alguma coisa, Miguel. Por acaso
cê me ama ainda? – perguntou com os olhos lacrimejantes.
-
Eu... sim, sempre a amarei, respondeu, mas ainda sério.
-
Então, Guel, talvez possamos ficar juntos. Se parar com tudo agora há um lugar,
o Purgatório; não é o Céu, mas é bem melhor que o Inferno. Podemos nos amar pra
sempre, nunca envelheceremos e...
Ela
foi interrompida de repente. A lâmina forjada nos altos e de quase um metro
atravessou seu ventre deixando-a sem reação. Os dois olharam-se fixamente e em
dois movimentos, Miguel girou a espada e dividiu o corpo da garota em dois. E
tal qual aconteceu com seu “pai”, ambas as partes desmancharam-se no chão em
milhares de vermes.
-
Acham que me conhecem? – gritou para o apartamento vazio – Acham que sabem quem
eu sou? Eu só saio daqui depois que mandar todos de volta ao lixo de onde
vieram!
Miguel
não queria deixar transparecer, mas essas aparições, de pessoas queridas suas,
deixaram-no abalado. Ele subiu para o próximo andar preparando-se para o que os
demônios lhe arrumaram. “Como conhecem tanto sobre mim”, perguntava-se. Ele
chegou ao sexto andar e logo viu a porta de um dos apartamentos aberta. Miguel
sabia que alguma coisa ou alguém o aguardava e poderia muito bem seguir
subindo; porém, dizia para si mesmo que isso era algo que ele teria que passar.
Ele entrou:
-
Meus parabéns, garoto! Sabia que cê chegaria aqui! Sempre soube que cê ia
longe, disse um homem batendo palmas, negro, cavanhaque, boné, sentado numa
poltrona.
-
Toninho! – exclamou Miguel. – Devia saber que usariam você.
-
Ué, Miguelzinho, vai dizê que não tá feliz de ver seu antigo chefe participar
da festinha aqui.
-
Sei... Então, o quê? Veio me dizer pra ir embora, desistir, já que, eu não vou
pro Céu mesmo, não é isso?
-
Não, não, meu irmãozinho. Eu tô aqui pra dizê exatamente o contrário! Continua,
pode continua com o que cê tá fazendo: traindo os amigos; mentindo pra
mamãezinha; salvando a humanidade de sei lá do que cê acha que tem que ser
salva; fazendo o serviçinho sujo pra eles – ele apontava o indicador para cima
– porque quando menos cê esperar vão te acertar pelas costas furando teu
coração ou cortar seu pescoço que nem tu fez comigo e aí, meu irmãozinho, tu
vai direto pra lá – apontava para baixo – sem direito a escala! E eu vou tá lá
te esperando pra onde tu me mandou. Vou te esperar de braços abertos meu
irmãozinho.
-
Acabou? – perguntou Miguel impassível.
-
É acabei sim, respondeu Toninho.
Então,
aconteceu tudo tão rápido que Toninho, ou a criatura fazendo-se passar pelo
antigo líder de Miguel, mal percebeu o que houve. Ele continuou sentado e não
entendeu como Miguel, que estava a dois metros dele, em um instante apareceu do
seu lado.
-
Vai pro Inferno! – disse à criatura e sua cabeça, com os olhos atônitos,
despencou vagarosamente para o lado caindo no chão e tendo o mesmo destino dos
outros inquisidores de Miguel.
-
Se isso é o melhor que cês conseguiram pensar, cês tão fudido! – Falou alto o
suficiente para que fosse ouvido enquanto saía do apartamento. Ele subiu até o
sétimo andar e, ainda nas escadas, já sentia um cheiro estranho no ar e
percebeu logo que deveria ser de enxofre.
-
Devo estar perto, concluiu.
Pelo
hall, vasculhou com a luz da lanterna algum apartamento aberto como os outros
e, ao invés disso, encontrou em frente ao número setenta e três um cão de
guarda, por assim dizer.
-
Parece que é aqui mesmo! – disse enquanto iluminava uma demoníaca criatura. Parecia
um rotweiller, porém, era enorme:
tinha uma coloração esbranquiçada como que sem pelos; enquanto rosnava e
babava, mostrava seus grandes caninos amarelados e seus olhos literalmente
vermelhos de raiva, todos os seis, do cão do inferno de três cabeças.
-
Devem ter se esquecido de colocar a placa de cachorro raivoso! – Miguel queria
se manter calmo, contudo, o cão preparava-se para atacar. As cabeças começaram
a latir sem parar, mas de modo dessincronizado. Ele ergueu sua espada e o
animal avançou! Um salto foi o suficiente para alcançá-lo. O monstro pulou em
cima dele e os dois fizeram uma cambalhota. Ao final do movimento, foi Miguel
quem ficou em cima do animal com a espada cravada na cabeça do meio, varando-a
de baixo para cima. Ele retirou a espada e girou saindo de cima da criatura; o
cão também conseguiu virar, porém, com dificuldade por causa da cabeça do meio
agora pendente. Ele atacou mesmo assim, contudo, não com a mesma velocidade de
antes o que deu tempo a Miguel apenas desviar para o lado e decepar a cabeça da
esquerda. O cão tombou escorregando no que pareceu ser seu próprio sangue.
Miguel se aproximou e a última cabeça do animal tentava em vão latir e
mordê-lo. Ele cravou sua espada terminando com a agonia do diminuto Cérbero.
Miguel
encaminhou-se para o, aparentemente, apartamento onde os demônios locaram-se.
Ele mal aproximou a mão da maçaneta e já sentiu um calor insuportável. Decidiu,
então, fazer uma entrada dramática: com o pé direito forçou a porta e, ao
abri-la, um bafo quente, como fumaça expelida de um vulcão, invadiu o andar
cegando-o momentaneamente. Abrindo os olhos lentamente, quase desejou fechá-los
de novo. “Eles trouxeram um pedaço do inferno pra cá!”, pensou consigo vendo
uma cena de horror: centenas, talvez milhares de demônios das formas mais
grotescas espalhados num local que se assemelhava a um grande depósito de lixo
a beira de um vulcão eclodindo. Os demônios grunhiam, rosnavam ou falavam uma
língua desconhecida. Miguel ainda estava na porta pensando no que iria fazer
quando as criaturas começaram a ir em sua direção – todos de uma só vez iam
atacá-lo! Miguel, sem saída, empunhou sua espada e preparou-se para lutar.
Quando os demônios estavam bem próximos, prontos para atacar, pararam,
congelaram como estátuas. Então, repentinamente, começaram a se mover e
abriram, na frente de Miguel, uma espécie de corredor. Sem outra idéia, seguiu
por esse caminho sem saber aonde chegaria. Dez minutos depois, viu, à sua
frente, algo parecido com um trono e uma grande criatura sentada nele:
-
Aproxime-se, humano, disse o demônio com cabeça de cão, olhos amarelos e com o
corpo coberto de um pelo cinza-escuro.
-
Então, você é o... rei do inferninho aqui? – debochou Miguel.
-
E tu, és o mosquito que nos mandaram atormentar? – ele abriu a boca e fez
ruídos que lembravam uma gargalhada. – Não tinham ninguém melhor?
-
Como chegaram aqui? Como conseguiram abrir um bolsão dimensional no plano
terreno? – perguntou Miguel.
-
Achas que só por carregar este artefato pode nos interrogar como quiser!
Lembre-se: só continuas vivo porque eu estou permitindo!
-
Sabem que não podem ficar aqui!
-
E o que tu sabes, humano! – quando se aproximou, Miguel pode sentir o bafo
quente e intoxicante da criatura.
-
Se não vai me dizer como vieram pode, pelo menos, dizer o porquê?
-
Há! Tu és corajoso, humano. Sei por que te escolheram, gosto de tu!
-
Então...
-
Ora, muito bem. Sabes, os bichinhos de estimação do teu Senhor andam desviando
muito do sagrado caminho dele; os desencarnados não estão resistindo ao
julgamento e vão todos parar nas fossas... E as fossas estão ficando cheias! –
então, os outros demônios ao redor manifestaram-se urrando, vociferando como
protestando por algo; todos ao mesmo tempo.
-
O inferno está cheio? – questionou Miguel. – É essa a desculpa pra vocês
invadirem a Terra!
-
Cuidado, humano! Não esqueças de onde estás! Aqui eu exijo respeito.
-
Não podem ficar, é invasão, estão violando o tratado. Se não voltarem...
-
Se não voltarmos o quê? Aquele exército de penas vai descer aqui e nos
expulsar... Ora, mas então seria o apocalipse não é mesmo?
-
Sabe que sim.
-
Que venham! Se quiserem falar de invasão, foram eles que invadiram primeiro e
não nós!
Os
demônios se manifestaram outra vez só que mais alto. Miguel não podia enfrentar
todos eles e se os anjos descessem, seria o começo do fim. Ele pensou um pouco
e:
-
Eu tenho uma idéia, disse ao rei demônio.
-
Ora, ora... o mosquito tem uma idéia. Pois fale, humano, mas aviso-lhe: se não
gostar, vou fazer teu sangue ferver até eu cansar e, acredite, não me canso
fácil!
-
Está bem, mas terão que prometer que não atormentarão mais os moradores.
-
O quê? E o que faremos nos dias de folga? – Ele fez aquele mesmo ruído e Miguel
teve certeza de que era uma risada.
-
Eu falo sério! – rebateu Miguel.
-
É claro que falas, humano! Muito bem, diga qual é teu grande plano!
Um
dia depois, um sábado de manhã, dois grandes caminhões de mudança dividiam a
calçada em frente ao edifício trazendo móveis e utensílios dos primeiros
moradores que retornaram após a notícia de que o prédio não estava mais
assombrado se espalhar pela mídia e pelas pessoas.
Ao
longe, Miguel e Gabriel observavam a movimentação.
-
Como fez pra notícia chegar aos ouvidos certos? – perguntou Miguel.
-
Sonhos ainda são o nosso melhor canal de comunicação com os homens, respondeu
Gabriel.
-
Então deve ser por isso que eu não sonho mais, disse Miguel para o arcanjo com
um sorriso. Este apenas disse:
-
Não sei se gostei da tua idéia...
-
Preferia à alternativa, retrucou Miguel. Gabriel silenciou-se.
Mais
tarde, à noite, um dos moradores chegava de carro depois de lidar com a mudança
e um dia de trabalho. Ele estacionou na sua vaga e ao sair, teve a impressão de
ter visto algo mexer-se às suas costas. Preocupado, vasculhou com os olhos o
estacionamento, rezando não encontrar nada. Então viu, passando de uma coluna
para outra, um rato. Apesar de consideravelmente grande o morador soltou um
suspiro de alívio e caminhou em direção aos elevadores. O rato, entretanto,
seguiu por outra direção: direto para um ralo descoberto; ele entrou e,
passando pelos canos, ao invés de chegar numa galeria de esgoto, encontrou um
cenário de filme de terror onde centenas talvez milhares de criaturas
demoníacas urravam sem parar. No alto, do que parecia um morro, um demônio
grande com cabeça de cão estava sentado num trono com uma das suas mãos
apoiando o queixo. Um outro, parecendo um lagarto, aproximou-se e perguntou:
-
O que faremos, mestre?
-
Esperaremos, respondeu; esperaremos...
Mesmo que alguns não entendam, acho legal ressaltar que o Miguel deste e do "Interludio" é uma ideia alternativa de um outro personagem que criei de mesmo nome e com um conceito bem parecido. Achei mais "fácil", digamos, trabalhar com este Miguel em formato de contos. O que mostra que as pessoas sempre se enganam.
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