Interlúdio
Miguel era um jovem que levava a vida totalmente desregrada. Ao completar a maioridade, é visitado pelo Arcanjo Gabriel que lhe diz que sua encarnação anterior - um homem íntegro, porém, descrente - acordou com ele que, se tivesse os poderes de um anjo, faria grande diferença no mundo.
“Um
lugar onde se trata do corpo porque da alma trata-se na igreja.” Era isso o que
dona Inês sempre dizia ao filho. E ele, apenas para retrucar, perguntava:
- Mas em qual
igreja, mãe? – e ela sempre tinha a resposta na ponta da língua:
- Qualquer uma
em que você consiga ouvir a voz de Deus!
Miguel sempre se
lembrava de que tentou seguir esse conselho, mas nunca tinha conseguido ouvir a
voz de Deus até recentemente quando, da visita de um anjo, resultou da
aquisição de habilidades incomuns e de sua missão peculiar.
- Já paguei as
contas no banco e acertei as compras com o seu Manuel. Mais alguma coisa?
- Quero sim,
Miguel, respondeu dona Inês; diga a sua irmã que não fique até tarde na casa da
Marcinha. Não quero ouvir falação depois.
-
Qualé, mãe, a Bruna já é bem grandinha.
-
Miguel!
Eles
não precisariam fazer isso. Um simples telefonema seria o usual, porém, como
enfermeira, havia vezes que dona Inês ficava no hospital o dia todo ou a noite
toda e Miguel, trabalhando de dia e estudando a noite, praticamente não se
viam. Salvo os finais de semana.
-
Falou mãe, tô indo!
-
Não esquece o que eu falei Miguel. Vai com Deus.
-
Fique você com Ele. – e ele falava sério. Mal sabia dona Inês no que seu filho
se tornara e ele já pensava em lhe contar tudo, no entanto, o momento não era
oportuno.
Porém,
antes, Miguel resolveu ir até o sexto andar onde ficava o setor de radiologia –
local de trabalho de Patrícia que ele viu num destes dias de visita à mãe.
Entretanto, no caminho, deparou-se com uma situação inesperada: uma garota,
aparentemente uns doze anos de idade, gritava desesperada num dos corredores e
estranhamente ninguém parecia ouvi-la. Ela puxava os braços e roupas de quem
passava perto, mas, mesmo assim, não lhe davam atenção. Contudo, Miguel sabia o
que estava acontecendo. Ele já havia vivenciado uma cena parecida e foi até
ela.
-
Oi, bonitinha, qual é seu nome? – perguntou.
-
Eu... meu nome é Cecília, respondeu a garotinha; você consegue me ouvir moço,
ninguém quer falar comigo...
-
Eu falo com você, Cecília. Por que cê tá chorando?
-
É a minha... mãe, ela tá... tá muito machucada... Eu acho que ela... ela pode
mo... morrer, mas ninguém quer me ajudar... – ela soluçava enquanto falava e
Miguel pedia que ficasse calma.
-
Me fala o que aconteceu com a sua mãe, Cecília.
-
Foi... foi o meu pai... ele bateu na minha mãe e... e aí... e aí me bateu
também e eu bati com a cabeça na parede... Eu não lembro direito, mas acho que
foi isso...
-
E onde tá sua mãe agora?
-
Acho que tá num desses quartos... eu me perdi...
-
E o seu pai, Cecília, tá aonde?
-
Acho que... ficou em casa... eu não sei direito...
Miguel
ponderou por um instante e decidiu:
-
Muito bem, bonitinha, vamos até a sua casa e falar com seu pai.
-
Mas a minha mãe... ela...
-
Ela está no hospital e será bem cuidada. Você pode vê-la depois, mas preciso
que me mostre o caminho da sua casa. Cê se lembra direitinho onde fica?
-
Lembro sim!
-
Então vamos.
Miguel
levou Ceci, como preferia ser chamada, até o estacionamento onde estava sua
moto. Ele montou e colocou Ceci na garupa; seguiram sentido zona sul da cidade
enquanto a menina explicava o caminho.
Aproximadamente
vinte minutos depois, os dois chegaram à casa de Ceci.
-
É aquela ali toda amarela, apontou a menina uma casinha humilde exprimida entre
tantas outras.
Miguel
parou em frente e percebeu que havia alguém dentro - “provavelmente o pai de
Ceci” - pensou.
-
Bonitinha, cê espera um pouco aqui fora tudo bem?
-
Tá bom.
Miguel
bateu na porta e, dois minutos depois, um senhor de estatura baixa, pele
morena, grisalho e com a barba por fazer atendeu a porta:
-
Pois não?
-
Hã... oi! O senhor é o pai da Cecília?
O
homem que até então tinha uma expressão sonolenta, de súbito despertou, como
que tomado um susto.
-
E o senhor é quem? – Ele olhava para cima quando se dirigia a Miguel. Seus um e
noventa de altura e sua pele retinta sempre intimidava. E ele sabia disso. Resolveu
interrogá-lo.
-
Eu sou... um amigo de sua filha. É que a sua mulher está no hospital e parece
que chegou machucada, a Ceci está muito preocupada. O senhor não sabe de nada?
Onde o senhor estava quando aconteceu o ocorrido e, por acaso, procurou saber
de sua mulher e filha?
Por
um minuto, talvez dois, o velho encarou Miguel com certo ar de surpresa no
rosto e então perguntou:
-
Cê é polícia?!
-
Não, senhor, não sou. Como disse, sou amigo da sua filha e vim saber o que
houve.
-
Óia só, eu não lhe devo satisfação – e ele já ia fechando a porta na cara de
Miguel quando este impediu.
-
Senhor, espere!
-
Se você não é polícia, então não me amole!
-
Tudo bem senhor. Eu não sou só amigo de sua filha... também trabalho no
hospital e estão faltando alguns documentos de sua esposa.
-
Que documentos?
-
O que tiver aí o senhor precisa levar ou se preferir eu mesmo levo.
O
pai de Ceci parou para pensar e pareceu uma eternidade. Então finalmente...
-
Tá, tá bom, cê pode levar. Espera um instante aí.
-
Tudo bem senhor.
O
velho se afastou para o interior da casa e Miguel aproveitou a chance e chamou
Ceci. Eles entraram e ele disse a garota:
-
Muito bem, Ceci, quero que faça uma coisa pra mim, tudo bem?
-
Tá Miguel, o que é?
-
Você se lembra de onde estava quando seu pai te bateu? – Ela hesitou e pareceu
não entender a intenção do seu novo amigo. – Sei que pode ser dolorido,
bonitinha, mas preciso que você se lembre.
-
Bom eu... tava ali... – e ela apontou para o pequeno corredor que ia dar na
cozinha. Sem Miguel precisar pedir, ela caminhou até perto do batente da porta
e, como um estalo, ela se lembrou... Se lembrou de que estava em seu quarto
vestindo suas bonecas com um esmero que faria inveja a qualquer mãe quando
ouviu um bater de porta seguido de um grito gutural: era seu pai! Chegava
bêbado mais uma vez; e mais uma vez gritava com sua mãe. Então ela ouviu o tapa
do seu pai no rosto da mãe seguido do seu gemido de dor. Ela resolveu ir até
lá. Seu quarto ficava nos fundos da cozinha e sempre tinha que passar por ela
para chegar até a sala. Ceci parou exatamente na porta que dava para a sala e
viu sua mãe sendo espancada pelo seu pai. Ele era sempre violento, mas, naquele
dia, estava diferente – ele não parava. Ela gritava, esperneava, mas ele não
parava. Então, num momento de heroísmo? ela tentou salvar sua mãe precipitando-se
na sua frente:
-
Para, pai, para! – ela dizia, porém, na sua cólera, o pai de Ceci respondeu com
outro tapa; no rosto da menina. E foi tão forte que ela rodopiou pela pequena
sala até chegar perto de uma estante. Uma estante não estava inteiramente
montada – algumas prateleiras não estavam colocadas – e, por isso, alguns
pregos ficavam salientes. Pregos colocados pelo seu pai para firmar melhor o
móvel já usado. Eram pregos grandes, compridos e quando a pequena cabeça de
Ceci colidiu com eles, seu frágil crânio não suportou o impacto. Foi quando
veio uma escuridão. Ela não se lembrava exatamente quanto durou, apenas que
teve medo – sempre teve medo do escuro – talvez, por isso, tenha bloqueado, na
memória, esta parte em específico. Mas, logo depois, a escuridão dissipou-se
quando abriu os olhos; tempo suficiente para ver sua mãe sendo levada por
paramédicos para uma ambulância. Não viu seu pai por perto e nem pensou em
procurá-lo, apenas seguiu com sua mãe, estranhamente, sem que os enfermeiros notassem
sua presença. Agora ela se lembrava de tudo... e entendia.
Por
causa de sua nova habilidade, Miguel viu o que aconteceu a pequena Ceci e
tentou consolá-la:
-
Tá tudo bem, bonitinha, eu resolvo.
Dito
isto, o pai de Ceci voltou à sala com alguns papéis na mão:
-
De documentos dela são poucos, mas deve de tê algum por aqui...
Ele
se abaixou e começou a revirar uma espécie de baú que estava no chão. Miguel se
aproximou e interpelou o velho:
-
Senhor, onde escondeu o corpo de Ceci? – ele paralisou como uma estátua. – Eu
já sei de tudo, senhor. Ceci precisa ir embora, por favor, só diga o que fez
com o corpo.
De
repente, com um movimento rápido para um homem constantemente bêbado, ele se
virou em direção a Miguel que, com um olhar de surpresa, foi obrigado a se
afastar – o velho lhe apontava um calibre trinta e oito. Havia tempo que Miguel
não via uma arma na sua frente, mas procurou ficar calmo.
-
E tu disse que não era polícia! Eu sabia!
-
Senhor, isso não é necessário podemos fazer...
Miguel
não conseguiu terminar sua frase. O estampido seco da arma abafou o som das
suas últimas palavras; e a bala que atravessou seu peito concluiu o trabalho
derrubando oitenta e cinco quilos no chão.
A
pequena Ceci mal acreditou no que acabara de ocorrer na sua frente. Ela gritou,
porém, ninguém podia escutá-la; enquanto seu pai, com uma expressão que
misturava alívio e satisfação, estava em pé ao lado do corpo inerte do único
que poderia ouvi-la.
Então,
algo começou a mudar na meiga e doce Ceci. Sua inocência, por ironia, morreu
naquele instante e a imensa tristeza que sentia transformou-se em uma raiva
incontrolável. Ela decidiu por si mesma que faria ser ouvida – e fez: duas
portas no interior da casa começaram a bater sozinhas – o pai de Ceci achou que
foi ação do vento – contudo, as janelas estavam fechadas; na TV, os canais
trocavam por vontade própria; alguns papéis que estavam em cima da mesa e no
chão levantaram vôo em direção ao velho e rodopiaram ao seu redor... Naquele
instante, já bastante assustado, viu as lâmpadas da casa começarem a piscar e a
estourar como se fossem balões. Ele agachou-se em posição fetal e começou a
rezar algo parecido com o pai-nosso.
Mas
a cena fantasmagórica não parou e nos olhos de Ceci só havia raiva e lágrimas e
um pensamento que lhe escapou: “você merece!”. Foi quando uma mão conhecida e
amiga pousou em seu ombro direito e uma voz forte, porém, apaziguadora a
acalmou:
-
Ceci, pode parar agora.
-
Miguel! Achei que você tinha morrido - ele apenas balançou a cabeça e foi em
direção ao pai de Cecília.
-
Senhor, eu preciso saber...
-
Enterrei ela no quintal lá no fundo, disse o velho a Miguel sem nem mesmo
questionar como, depois de ter atirado à queima-roupa no rapaz, ele estava ali,
vivo, na sua frente; coloquei ela num saco plástico e enterrei lá.
O
velho não parava de chorar e dava para ver no rosto de Miguel sua indignação
pelas atrocidades daquele homem. Ele olhou para Ceci e esta apenas derramava
lágrimas, no entanto, desta vez, de paz. Miguel chamou a polícia e algum tempo
depois eles chegaram; encontraram o corpo da inocente menina e levaram seu pai
preso. Miguel viu tudo isso a distância e viu também Ceci sendo levada para o
lugar o qual pertencia agora.
Mais
tarde, Miguel voltou ao hospital e achou a mãe de Ceci. Ela estava desacordada,
sedada devido aos ferimentos, mesmo assim, Miguel se curvou perto do seu ouvido
e disse:
-
Não se preocupe, Ceci está em paz agora.
Ela
não esboçou nenhuma reação, mas uma lágrima escorreu de seu olho direito e
Miguel então foi embora. Antes, porém, deu uma última olhada em sua mãe e saiu.
Ele sabia que isto era uma parte pequena de sua missão, importante, mas
pequena. E estava apenas começando.
Escrevi este conto inicialmente como parte de mais três (se não me engano) que foram inscritos para um concurso literário. Já a história foi inspirada nas terríveis notícias de crimes sem sentido que lemos ou assistimos em alguns noticiários de fim de tarde. A impotência diante isto, pelo menos pra mim, só não é maior que a das vítimas.
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