O Alienígena
Arthur se sentia deslocado no mundo. Se sentia estranho, diferente de seus amigos e de todos. Mas mesmo o mais estranho dos seres tem um lugar no universo.
Quando ouviam o plaft do jornal agredindo o balcão da recepção, todos sabiam que ele havia chegado; pontualmente às oito da manhã.
- Vocês viram isso? – perguntou de
forma que todos ali em volta ouvissem. – Leram o que está aqui? Como deixam
algo assim acontecer? – a manchete que ele apontava com o indicador dizia que
duas pessoas foram assassinadas num assalto. – Roubaram a bolsa da mulher e a
carteira e o celular do acompanhante... – narrou parte da reportagem. – As
pessoas se matam hoje por tão pouco... eu não consigo acreditar nas coisas que
acontecem aqui... – e como sempre todos o olhavam perplexos. Em outro dia,
chegou do mesmo jeito com o jornal estampando o conflito entre israelenses e
palestinos: “quando vão deixar de ser crianças?” – foi seu questionamento. No
outro, a notícia espatifada na recepção era da alta estiagem no Nordeste: “como
deixam seu povo morrendo de fome e sede?”; e em outro, chegou quase rindo o que
assustou alguns de seus colegas: “ha, ir para o espaço vocês querem, mas cuidar
do próprio planeta, pra quê? – ele apontava na ocasião duas notícias: uma
mostrava a nova incursão da NASA na estação espacial; a outra estampava uma
foto de um navio petroleiro que havia vazado e praticamente destruído o litoral
de uma das ilhas do caribe. Muitos ali não sabiam o que pensar ou mesmo dizer.
Arthur já trabalhava com eles há um bom tempo e mesmo quem o conhecia bem antes
nunca o entendia.
- Qualé Arthur, de novo? – disse Sérgio,
um dos seus amigos mais próximos.
- Isso acontece todo dia! – falou
depois Gregório.
- Deus do céu Arthur, de que planeta
você veio? – perguntou Sofia da recepção.
- Só não entendo como vocês se
conformam com tudo isso! – replicou ele.
- Aí está, devolvia Sofia; esse vocês que você usa o tempo todo! Somos
nós todos né Arthur?
- É apenas maneira de dizer... –
resignou-se. E como sempre recolhia seu jornal e ia para seu setor.
Mas Arthur não era sempre assim. Na
maior parte do tempo era recluso, quieto mesmo. E sério. Sabia-se que morava
sozinho, tinha um aquário com um peixe de estimação e só. Não falava muito
sobre si, concentrava-se no seu trabalho com um afinco fora do normal e sim:
houve um relacionamento amoroso. Nas raras vezes que saía com os amigos para o happy hour eles sempre mencionavam o
fato.
- E aí Arthur, e a Patrícia? – começava
Sérgio quase como um ritual. – Nunca mais se viram?
- Não, respondia conciso tomando um
gole de vinho logo depois.
- Mas vocês só ficaram o quê, seis
meses? Não rolou mais nada? – Gregório incluía-se no interrogatório. Arthur
suspirou e olhou para ambos antes de responder.
- Tivemos uma boa experiência, apenas
isso, disse antes de mais um gole de tinto.
- Boa experiência! – exclamou Gregório.
– Parece que você tá falando de um projeto ou sei lá!
- E todos os relacionamentos não são um
tipo de projeto? – questionou ele um tanto sério. – Toda a nossa vida é um
projeto. Há uma causa de estarmos aqui e um objetivo para alcançarmos. Não acho
estranho pensar assim.
- Aí é ser muito racional cara! – disse
Sérgio.
- Acho que é exatamente isso que nos
falta: mais racionalidade. Seria tudo diferente aqui.
- Projetos, racionalidade... esse papo
de bar tá muito sério! – reclamou Sérgio. – A vida é pra ser vivida Arthur e
não projetada, fala aí Gregui! – Gregório respondeu com um sonoro é enquanto suas mãos chocavam-se no ar.
“Vocês estão errados”, pensou Arthur não querendo prolongar o assunto.
- Vamos falar de outra coisa, sugeriu
Sérgio: - Aí Arthur, acho que a Sofia tá a fim de você! – disse lançando um
olhar malicioso sobre ele.
- Mesmo, você acha? – indagou-o com um
leve sorriso.
- Claro cara! Não percebeu o jeito que
ela te olha? – perguntou Sérgio e Gregório concordou novamente com um é prolongado.
- Talvez... – respondeu Arthur meio
displicente.
- Mas e aí, vai fazer alguma coisa? –
insistiu Sérgio.
- Não sei se quero outro relacionamento
agora, respondeu.
- Quê? – espantou-se Gregório. – Como
assim! A Sofia gostosinha daquele jeito e você não quer?
- Não é questão disso, Arthur riu; só
não sei se quero ou posso ter outro namoro agora.
- Sabe qual é o seu problema? –
perguntou Sérgio e já respondendo. – Você pensa demais!
- Talvez, concordou sem graça.
- Então, cê vai chegar na Sofia? – quis
saber Gregório.
- Talvez, respondeu Arthur e os três
soltaram uma descontraída gargalhada.
Na segunda, Arthur chegava espatifando
mais um jornal:
- Vejam só, se dizem que este é o país
do futuro, então ele já está condenado! – apontava para uma foto onde um grupo
de adolescentes aparecia detido pela polícia após uma tentativa de roubo. No
entanto, dessa vez um outro plaft
seguiu-se o que surpreendeu, não apenas as pessoas ao redor, como o próprio
Arthur.
- Eu discordo, acho que temos sim um
futuro promissor! – disse Sofia apontando para uma matéria que exaltava os
esforços de uma ONG na região periférica da cidade em recuperar e auxiliar
jovens infratores.
- Ah... então... – tentava Arthur dizer
algo, mas foi interrompido por Sofia.
- Então Arthur, se você não gosta
daqui, como parece, por que não se muda para um lugar mais do seu nível? –
questionou-o enfaticamente. Arthur emudeceu. Nos segundos que pareceram horas
pensou no que dizer, mas as palavras certas não vieram. O que veio foram umas
poucas lembranças de situações parecidas em que de repente sentia-se diferente,
um estranho mesmo entre semelhantes. Algumas palavras vieram, contudo:
- Vocês sempre me entendem mal...
- Tá, explique-se! – disse Sofia de
braços cruzados.
- Veja, eu adoro minha vida aqui, meu
trabalho, vocês todos. Eu me assusto com as coisas que acontecem por aqui e em
toda parte; leio tudo isso e parece que todos estão só fazendo isso: lendo. E
às vezes nem isso. Sei que exagero um pouco, mas essa é a maneira que encontrei
de fazer vocês, ou melhor, nós todos acordarmos para o que acontece e não
aceitar tudo tão fácil, tudo bem? – quando terminou seu discurso, viu que Sofia
estampava um pequeno sorriso.
- Ai Arthur, não me leva a mal também,
mas é que às vezes você parece...
- Nervoso demais?
- Eu ia dizer arrogante demais, mas
nervoso também serve... – ambos riram antes de Arthur pedir licença a Sofia e
se retirar, no entanto:
- Arthur, que tal se a gente um dia
desses fosse comer uns bolinhos de bacalhau e tomar uma cervejinha ali no Dona
Catarina? – perguntou Sofia. Arthur não respondeu de imediato. Lembrou-se do
bate-papo com Gregório e Sérgio. E estranhamente, em seu íntimo, não parava de
ouvir um constante não. A resposta
veio logo depois:
- Sem problema! Se você puder, iremos
amanhã.
- Combinado! – disse Sofia e um longo
sorriso lhe escapou às faces. Arthur deixou-se escapar um também, porém, mais
contido. E reparou que aquele não havia
sumido.
Naquela noite, enquanto voltava para
seu apartamento, repassava seu dia e deu-se repentinamente olhando para o céu.
Achou que estava mais estrelado do que nunca e uma estrela em particular lhe
chamou a atenção. Sem saber a razão a palavra casa lhe veio à mente e, antes
que pudesse cogitar o porquê, uma sombra arroubou-o dos pensamentos. O impacto
com um muro foi forte, porém, o susto e o medo não lhe deixaram sentir a dor da
pancada.
- A carteira e o celular, tiozinho! A
carteira e o celular! – gritava o agressor. Arthur mal conseguia vê-lo.
Percebeu apenas que usava um boné; um capuz cobrindo a cabeça e, nem se
tentasse, saberia dizer qual era o calibre da arma apontada em direção ao seu
rosto.
- Tá... calma... tá aqui... – seus
dedos tremiam e o atrapalhavam ao pegar a carteira contrapondo-se com as mãos
rápidas e fortes do assaltante.
- Vai cara, o celular, o celular! –
gritou-lhe de novo. Porém seus dedos o atrapalharam novamente e o aparelho
caiu.
- Tá me tirando vacilão! – Arthur tinha
a intenção de dizer um não, mas o projétil que atravessou sua têmpora esquerda,
seguido de um estampido seco, foi mais rápido. Ele fechou os olhos
instantaneamente e qualquer pensamento que ainda poderia ter tido evanesceu-se
ali. Nada mais importava. Nem mesmo aquela estrutura orgânica e óssea que
chocou-se naquela calçada dura e fria e que outrora abrigara uma consciência.
- Bom dia Doutor, foi uma voz tenra e
suave que abriu seus olhos. A Assistente em frente a sua cama era esbelta e sua
pele brilhava de tão lisa ao contrário da anterior que já aparentava os sinais
da idade na baixa estatura. Seus pedidos tinham sido atendidos.
- Bom dia, respondeu ele com um
sorriso.
- Sabe que dia é hoje Doutor e em que
ano estamos? – perguntou e o sorriso dele sumiu. Percebeu que ela era séria.
- Estamos no 65º. dia do nono ciclo do
ano 4576 da Era Oriana, respondeu tentando parecer tão sério quanto.
- Sabe onde estamos? – perguntou em
seguida e ele começou a se enfadar.
- Estamos no estação avançada Lotharium
em órbita do oitavo planeta do Sistema Gésio 4! – fungou.
- Muito bom, disse dedilhando algo em
um pequeno aparelho na mão direita. – Diga-me agora seu nome.
- Meu nome é Ottim! – disse ele com uma
expressão fastidiosa. No entanto, a Assistente ignorou.
- Seu nome completo Doutor!
- Ottim N’Darf de Berim, Segundo Doutor
Chefe da seção de pesquisa e estudo extraplanetário, nascido em Torakati no
setor norte na Comunidade Berim, satisfeita? – disse insolentemente. A
Assistente estava prestes a replicar quando foi interrompida.
- Acho que isso nos satisfaz sim, era
um senhor enorme que entrava no quarto. Enorme tanto para cima quanto para os
lados. – Obrigado por hoje Millii! – a Assistente acenou um sim com a cabeça e
saiu não sem antes deixar um olhar severo para Ottim.
- Acho que vou querer outra Assistente,
disse ele.
- Não vai acontecer, rebateu o outro.
- Luzzo, chamou Ottim sentando-se na
cama; quanto mais tempo terei que ficar aqui?
- Sabe muito bem como são os
procedimentos de reinserção, respondeu; só estamos cuidando um pouco mais de
você devido ao modo que foi extraído de campo, completou.
- Não fui o primeiro a ser extraído
repentinamente!
- Sabemos disso. É por isso que tomamos
todos os cuidados... Como se sente?
- Estou bem, mesmo.
- Certo, mas até agora, de todos os
Agentes, somente você ficou tanto tempo na Terra como o chamam... – ele então
olhou para Ottim de modo indagador. – Sentirá falta de alguma coisa?
Ele lembrou-se então do seu trabalho no
instituto de estatística, da amizade com Gregório e Sérgio e achou que se
lembraria dos lisos negros e da maciez alva de Patrícia, no entanto, foram os
dois discos esmeraldas e o cintilante sorriso de Sofia que lhe vieram a mente.
- Não, eu creio que não, forçou-se a
responder.
- Muito bem então, Luzzo virou-lhe as
costas e foi em direção a porta, contudo: - Amanhã você estará livre.
Aproveite, estamos de partida! - e se
retirou.
No dia seguinte, Ottim dirigiu-se ao
observatório da estação. Lá, poderia ver pela última vez aquele singelo globo
que por um longo período foi seu lar. Quando chegou, não apenas viu um ponto
azulado ao longe, como também, seu reflexo no vidro. Estranhou-o, porém. Ao
invés da pele de um verde claro e das duas pedras de um laranja incandescente entre pálpebras amendoadas, eram olhos e cabelos negros que combinavam com sua pele amorenada. De
repente, um riso que misturava desespero e perplexidade começou a preencher
aquele ambiente frio e silencioso. De repente, ele percebeu que ali, mesmo
entre seus semelhantes, começara a se sentir diferente, um estranho entre
iguais, um... alienígena.
Este conto é praticamente uma homenagem as histórias de FC a la Além da Imaginação e a um dos maiores autores desse gênero: Arthur C. Clarke.
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