O Enterro

Meu nome é Davi. Apenas Davi. Esse nome me foi dado pelas pessoas que me criaram. As mesmas pessoas de quem agora eu fujo. Parece confuso, me sinto assim também, mas sei que fazendo isso, muito do que é e será da minha vida, terá um sentido.

     Havia dois meses que eu fugira do que relutava em chamar de lar. O céu estava nublado, fazia um pouco de frio – não que eu realmente sentisse – mas, para me misturar com os outros, tinha que, pelo menos, fingir. Parei em frente a uma loja onde uma tela exibia o noticiário da manhã. Segundo o apresentador, 2284 não começou tão bem: a supergripe havia feito mais vítimas e houve rumores de que as colônias na Lua e em Marte queriam independência da Terra. Esperei para ver alguma notícia sobre o acidente no Centro de Tecnologia Nacional; entretanto, a única coisa de que falaram foi a respeito da mudança do CTN de São Paulo para Goiás próximo da capital. Eles encobriram tudo. Até a fuga dos vinte “hóspedes” como eles chamavam. Fiquei pensando que a qualquer momento podia ser encontrado e resolvi continuar andando. Para onde ainda não sabia. Caminhando pelo calçadão, tentava encontrar um novo local para descansar quando fui surpreendido com o barulho de rodas guinchando no asfalto seguido de gritos e tumulto: alguém tinha sido atropelado – um sem-teto, como dizem; e acho que foi por isso que me solidarizei com ele, já que, também era um sem-teto. Era um homem, aparentava de quarenta a cinquenta anos, roupas bastante velhas, tinha barba e estava um pouco sujo. A multidão, que havia se aglomerado em volta, já estava se dispersando quando me surpreendi pela segunda vez: o motorista, que tinha atropelado o homem, fugiu do local sem ao menos prestar socorro. Não sei se foi por vontade própria ou por minha “educação” que decidi ajudá-lo, porém, o fiz assim mesmo e deixei a dúvida para depois. Consegui ouvir seus batimentos cardíacos e estavam fracos; o fêmur e algumas costelas estavam fraturados. Sabia que havia um hospital aqui perto, no entanto, ninguém chamou uma ambulância. Resolvi levá-lo mesmo correndo o risco de agravar sua situação. Chegando, percebi que não seria fácil conseguir ajuda médica. O número de pessoas a serem atendidas era enorme – não fazia a menor ideia de que era assim. Fui obrigado a deixá-lo no chão – não havia assentos vagos e não vi macas por perto.  Fui até o atendimento e relatei toda a situação do meu, assim chamado, amigo. Segundo o atendente, para ele ser atendido, precisaria estar registrado com algum tipo de cartão de identificação que dava acesso a vários serviços, incluindo hospitalares...
– O homem está sangrando e com os ossos partidos, disse a ele, mas de nada adiantou. Diante do descaso e da falta de compaixão, fui tomado por algo que nem sabia que possuía. Uma condição que todo ser humano estava submetido e que espero nunca mais repetir, pois me arrependi amargamente. Descontrole, raiva, fúria, não importava o nome era algo que, nos homens, preferiria não espelhar. Arremessei cadeiras a esmo atingindo quem estava no caminho, portas de vidro e janelas foram quebradas...
– VOCÊS VÃO AJUDÁ-LO! – gritei como um louco e só parei quando apareceu na minha frente uma garotinha de olhos grandes e azuis. Vi meu reflexo neles e comecei a sentir o mesmo medo que ela sentia por mim. Olhei ao redor e vi pessoas machucadas onde deveriam ser tratadas, a entrada do hospital semidestruída e tudo por minha causa. Queria tanto ser igual a eles e percebi que, por alguns minutos, eu consegui. Ouvi alguém dizer que a polícia estava vindo. Toda a minha vida de cárcere voltou à memória e fui forçado a fugir deixando meu amigo a sua própria sorte. Tentei correr o mais longe que podia, mas não consegui. Não consegui parar de acessar minhas memórias e ver o que eu causei. Não havia justificativas. Não importava o que havia acontecido ou o que eu era. Apesar de temer pela minha segurança temi também pela vida do velho sem-teto e decidi não ir muito longe para voltar e ver se ele estava bem. Acabei encontrando um desses grandes centros comerciais e entrei. Avistei um sanitário e me escondi nele esperando que ninguém me encontrasse.
Passaram-se cinco horas.  Eram duas da manhã quando sai. Tentei ouvir alguma coisa sobre o incidente no hospital, mas só escutei banalidades e discussões alheias. Se a polícia realmente foi ao hospital e me procurado, já deviam estar longe. Preocupado com meu amigo, voltei ao hospital, mas tomando o cuidado para ninguém me reconhecer pela rua. Lembrei-me que atrás do hospital existia uma ruela onde deixavam o lixo para a coleta; um portão era usado para colocá-lo para fora. Resolvi usar esse portão para entrar escondido e evitar chamar atenção. Adentrando a ruela, por entre caçambas e sacos de lixo, acabei tropeçando num destes. Não sei como ou porque, mas percebi algo de diferente em um. Era maior que os demais, com formato mais retangular... Uma mistura de curiosidade e pavor me fez querer abri-lo. Relutei por um instante, mas abri-o assim mesmo e, aquele sentimento de mais cedo, voltou; porém, junto com outra coisa: angústia, tristeza, indignação.  Não sei se foi um ou todos de uma vez porque era a primeira vez que eu sentia algo assim e de alguma forma sabia que não seria a última. Ver o corpo do meu amigo jogado daquele jeito como um verdadeiro lixo me fez questionar sobre que mundo é capaz de me criar, contudo, não consegue ou não quer salvar alguém como ele. Comecei a sentir raiva de novo, mas, desta vez, de mim mesmo que, ao invés de ajudar, acabei fugindo para me salvar quando era ele que precisava ser salvo. Da minha memória, encontrei uma prática que os humanos costumam realizar quando alguém morre. Decidi fazer o mesmo sem realmente entender o significado deste ato. Carreguei o corpo flácido de quem chamei de Daniel, apenas Daniel, até uma praça com árvores e gramado – uma das poucas que existia – e enterrei-o ali. Fiz uma cruz, de acordo com o procedimento, com alguns galhos e, num pedaço de madeira, escrevi: AQUI JAZ UM SER HUMANO. Detive-me ali por alguns minutos até o painel do meu pulso esquerdo se abrir indicando baixa quantidade de energia. Tive que encontrar um local seguro e esperar o Sol nascer para me recarregar. Enquanto me afastava do túmulo de Daniel, pensei em tudo que aconteceu e, mais uma vez, senti angústia, pois, se foram capazes de fazer isso com um igual, o que farão comigo quando me descobrirem.

Comentários

  1. Este conto tem um história estranha. Criei-o inicialmente para um concurso de contos que haveria na minha cidade. Não consegui terminá-lo a tempo, mas fiquei com ele na cabeça por um tempo. Então encontrei o site do.Texto Livre (hoje extinto) e resolvi terminá-lo e postá-lo. Minha intenção e que o conto funcionasse como um teste para ver o que as pessoas achavam do meu texto.

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